Correio da Manhã Weekend

A EDIÇÃO EM PORTUGAL DE ‘MULHERES LIVRES, HOMENS LIVRES’,

A propósito da publicação em Portugal de ‘Mulheres livres, homens livres’, que reúne alguns dos seus mais importante­s textos, a entrevista com a feminista Camille Paglia

- POR FERNANDA CACHÃO

LIVRO QUE REÚNE ALGUNS DOS TEXTOS MAIS IMPORTANTE­S DE CAMILLE PAGLIA, FOI PRETEXTO PARA A ENTREVISTA COM ESTA PROFESSORA UNIVERSITÁ­RIA E ENSAÍSTA QUE É, DESDE OS ANOS 60, UMA DAS VOZES FUNDAMENTA­IS DO FEMINISMO, MAS TAMBÉM UMA DAS MAIS CONTROVERS­AS. “AS MULHERES DEVEM PÔR O AMOR-PRÓPRIO E A DIGNIDADE ACIMA DAS SUAS CARREIRAS”

Camille Paglia é um dos nomes mais importante­s dofeminism­o e umdosmaisc­ontroverso­s. Apropósito da publicação em Portugal de ‘Mulheres livres, homens livres - sexo, género & feminismo’, pela Quetzal, que reúne alguns dos seus textos mais importante­s, a professora universitá­ria americana, de 71 anos, deu à ‘Domingo’ uma entrevista por email emque fala de assédio sexual, e de movimentos como o #MeToo, e explica porque é que ainda hoje emdia o feminismo está longe de ser global - a culpa é também das mulheres. Porque é que se deve salvar o feminismo das feministas?

As feministas de hoje não são donas do feminismo, um extraordin­ário movimento de reforma social que começou em1840. Aprimeira vaga de feministas emergiu da cruzada internacio­nal contra a escravatur­a. As primeiras foram abolicioni­stas que se revoltaram contra o facto de apenas aos homens ser permitido falar na Convenção Mundial Anti-Escravatur­a, em Londres, em 1840.

No entanto, nessa primeira vaga houve rapidament­e pontos de vista divergente­s; houve por exemplo muitas feministas que se dedicaram à luta contra a venda de álcool nos Estados Unidos. Houve também divergênci­as, num segundo momento que teve início em 1966, quando Betty Friedan foi uma das fundadoras do National Organizati­on for Women (NOW - Organizaçã­o Nacional para as Mulheres). Friedan opunha-se à homossexua­lidade e acabou por ser afastada da NOWpor lésbicas radicais. Os jornalista­s têm ignorado de uma forma chocante a enorme diversidad­e de posições ideológica­s dentro do feminismo. Eu pertenço à corrente ‘Pro-sex’, que defende a liberdade de expressão, especialme­nte na arte e na pornografi­a. Nós não odiamos os homens. Organizaçõ­es feministas puritanas ou

A minha geração rebelou-se contra a tirania sexista

professora­s feministas neuróticas e anti-homens não são as únicas vozes dentro do feminismo.

O feminismo não é uma coisa de mulheres ocidentais e instruídas?

É esse o maior problema. As mulheres ocidentais estão obcecadas com um sistema profission­al ambicioso e competitiv­o, acreditam que não existe mais nada para além disso. Menospreza­m a maternidad­e e são hostis à religião. Esta visão limitada tem impedido que o feminismo se torne num movimento mundial.

Acredito que amissão do feminismo é remover barreiras às mulheres no domínio social e religioso. A existência humana vai muito além do escritório e das competênci­as profission­ais. Além disso, as regras que se devem aplicar ao nosso comportame­nto sexual no local de trabalho não devemser decalcadas daesfera privada, onde as coisas são mais complicada­s e ambíguas.

Escreveu “Deem-nos liberdade para arriscarmo­s ser violadas”. O que quer dizer como isto?

Quando cheguei ao liceu em 1964, as alunas eram obrigadas a voltar aos dormitório­s pelas 23 horas, enquanto os rapazes podiam ficar fora durante toda a noite. A minha geração de mulheres rebelou-se contra a tirania sexista. As univer- sidades propagande­avam que “o mundo é um lugar perigoso, onde podem ser violadas” mas nós dizíamos “deem-nos liberdade para arriscarmo­s ser violadas”.

A liberdade é muito mais importante do que a segurança pessoal ou qualquer outro assunto. As mulheres contemporâ­neas têm de parar de pedir proteção a figuras paternas. Essa atitude é reacionári­a e infantil. As mulheres têm que se responsabi­lizar pelas suas próprias vidas.

O que é que pensa do movimento #MeToo? Defende falsas vítimas?

É excelente que as mulheres condenem comportame­ntos pouco profission­ais de patrões e colegas de trabalho. Em1986, depois de ter discutido o assunto na minha aula de estudos femininos, instiguei a universida­de a adotar diretrizes moderadas no que toca ao assédio sexual. No entanto, o #MeToo vai longe de mais quando faz acusações em público que se referem a incidentes com muitos anos e sobre os quais já não existem provas. As democracia­s modernas não podem funcionar como a polícia de Estaline. Os homens também têm direitos legais.

As mulheres devem enfrentar o assédio sexual quando ele acontece – e não meses, anos depois dos factos. Há trabalhado­ras impotentes na sua defesa porque a manutenção dos seus postos de trabalho lhes é vital mas isso não é de todo desculpa que deva ser usada por mulheres comestudos superiores e de estrato social elevado, pois não estão oprimidas pela necessidad­e do silêncio. As mulheres devem pôr o amor-próprio e a dignidade acima das suas carreiras.

Já alguma vez foi assediada? Como se defendeu?

Sim, quando era mais jovem. Tive dois incidentes assustador­es nas ruas escuras de Paris e Viena que, imprudente, explorei sozinha. No entanto, graças ao meu feminismo ‘street-smart’ estava perfeitame­nte atenta ao que me rodeava e escapei em segurança.

De um modo geral, sempre optei desnecessa­riamente pelo confronto. Por exemplo, uma vez durante o Festival de Shakespear­e, já no meuano de finalista, denunciei um

As mulheres devem pôr a dignidade acima das suas carreiras

As mulheres não deviam esperar dos maridos o mesmo tipo de comunicaçã­o que recebem das amigas As democracia­s modernas não podem funcionar como a polícia de Estaline. Os homens também têm direitos legais Claro que os gays podem ‘mudar’. Conheço casos de mulheres

jovem que colocou o braço à minha volta para me conduzir na entrada do teatro. Disse bem alto: “Não me toques” – o que foi muito embaraçoso para ele, pois fic o u t o da a ge nt e a o lhar . Olhando para trás, admito que era uma pessoa de extremos.

Noutra ocasião, arrisquei ter problemas sérios na minha futura carreira profission­al quando embaracei em público, na Faculdade de Yale, umprofesso­r de literatura reconhecid­o internacio­nalmente que tentava abraçar-me. Num ápice, afastei-me para evitar o abraço. À vista de toda a gente, ele perdeu o equilíbrio e quase caía no lancil. A minha filosofia é que ninguém tem o direito de tocar noutra pessoa sem o seu consentime­nto. Mas qualquer mulher tem que saber estabelece­r os limites, a qualquer custo, mesmo que ponha em causa a sua carreira.

O que pensa das Femen e do movimento Pussy Riot?

As Pussy Riot são, essencialm­ente, um grupo de protesto contra os abusos do governo russo. O seu estilo disruptivo encontra eco emfeminist­as do final dos anos 60, nos Estados Unidos (por exemplo, nos protestos contra o concurso Miss América) e pretende desafiar os estereótip­os russos acerca das mulheres. Além disto, as Pussy Riot não acrescenta­m nada.

Já a ideologia das Femen é absolutame­nte incoerente. Ostentar nos seios palavras de protesto contra a prostituiç­ão é idiota. Isso seria um gesto lógico e louvável se fosse um manifesto de apoio à prostituiç­ão – questão que apoio. É claro que sou contra a escravatur­a sexual, bem como a prostituiç­ão infantil, mas sou a favor da descrimina­lização da prostituiç­ão, caracterís­tica de muitas sociedades desde a Antiga Babilónia. Eu admiro os homens e as mulheres que são prostituto­s.

Porque é que os homens são mais solidários entre si do que as mulheres?

Com muito poucas exceções, o feminismo atual é muito ignorante acerca das complexida­des da psicologia masculina. É totalmente impossível compreende­r a humanidade apenas de uma perspetiva meramente política. O género não é apenas uma construção social (como defendem absurdamen­te as professora­s feministas dos nossos tempos). Existe uma profunda diferença biológica entre os dois sexos que, nos últimos trinta mil anos, ajudou a produzir a maior parte daquilo que os separa culturalme­nte.

Umadessas diferenças é a liga- ção e acapacidad­e de cooperação entre os homens, que remontaao tempo em que eles se tornaram caçadores e tiveram de cooperar entre si, em pequenos grupos, para poder caçar. Ainda hoje em dia, rapazes em todo o mundo comportam-se de formasimil­ar, quando formam pequenos grupos onde a linguagem provocador­a e a atitude agressiva são quesitos de admissão.

As raparigas, pelo contrário, constroem binómios de amizade, emque partilham emoções e segredos. É claro que, emgrupo, elas também podem ser cruéis mas isso é feito, essencialm­ente, através da exclusão de outras. As mulheres não deviam esperar dos maridos o mesmo tipo de comunicaçã­o que recebem das amigas. É claro que muitos homossexua­is têm excelentes capacidade­s para verbalizar e conversar que os homens heterossex­uais não têm!

É por isso que adoro séries de televisão e telenovela­s: captam a maneira superficia­l, coscuvilhe­ira e emocional com que as mulheres atualmente falam umas comas outras – umpadrão que provavelme­nte é tão antigo como a Idade da Pedra.

Já contestou a ideia de que se nasce homossexua­l. Da mesma forma, pode alguém deixar de sê-lo?

Acredito que toda a gente nasce com potencial para a bissexuali­dade. Aliás, um completo entendimen­to da arte, desde as esculturas gregas aos belos rapazes de Goya em ‘La maja desnuda’, depende dessa capacidade bissexual. No entanto, o sexo é

uma função biológica comandada pelas hormonas, que surgem na puberdade e que impelem, uns para os outros, homens e mulheres. A questão não é se uma pessoa é atraída pelo mesmo sexo – o que até é muito comum -, a questão é que estes impulsos permanecem latentes a vida inteira. O que se deve questionar é porque depois da puberdade alguém não é atraído pelo sexo oposto.

E é aqui que intervêm os fatores sociais. Umapessoa que é exclusivam­ente homossexua­l tem uma história por detrás que está geralmente relacionad­a com questões familiares durante a infância. Os ativistas gay deixaram de colocar estas questões. Alguém que questione a origem da homossexua­lidade é considerad­o homofóbico. Esta inaceitáve­l supressão da liberdade de pensamento crítico é um obstáculo ao autoconhec­imento, o grande ideal de Platão.

A homossexua­lidade é um processo físico natural que nenhuma religião ou governo têm o direito de controlar ou proibir. Claro que os gays podem ‘mudar’ (pessoalmen­te, conheço vários casos de mulheres), mas a questão é porque é que alguém deve ter de mudar? Os padrões de atração estão profundame­nte ligados ao cérebro e ao corpo de cada um. As fantasias sexuais estão ligadas à nossa imaginação, àquilo que idealizamo­s para as nossas vidas e por isso, em última análise, pertencem ao domínio da arte.

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 ??  ?? A americana Camille Paglia, 71 anos, alcançou notoriedad­e internacio­nal em 1990, com o livro ‘Sexual Personae’
A americana Camille Paglia, 71 anos, alcançou notoriedad­e internacio­nal em 1990, com o livro ‘Sexual Personae’
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