Correio da Manhã Weekend

A pintura da Lenina

- TEMPO CONTADO Rentes de Carvalho

Éum quadro a óleo que há anos pusemos no vão da escada e fica bem ali, não só pelo grande formato mas porque representa uma figura bizarra de mulher, um pouco no género das do colombiano Botero: gorduchas, disformes, e com um ar de espanto parecem perguntar-se por que carga de água alguém lhes quis pintar a fealdade.

Um original do pintor colombiano seria outra loiça, não fosse que esses são para bolsa de cordões largos, de modo que não a tendo contenta-se a gente com a imitação, pois já antigament­e se dizia: “pra quem é bacalhau basta”.

Este nosso “Botero” foi pintado por Lenina, e antes que alguém torça o nariz explique-se já que não é Leninha, o diminutivo de Helena, mas Lenina mesmo, derivado de Lenine, por quem Dorival, o pai da nossa pintora e simpático baiano, mantém uma adoração que excede a dos crentes por Jesus.

Artista de modesto talento, Dorival insistiu que a filha lhe seguisse as pisadas, endoutrina­ndo-a para que em ocasião nenhuma esquecesse a luta do proletaria­do. Só que, como o velho Pascal afirmou e quase todos por experiênci­a sabemos, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, nem sempre honestas, aliás. Assim foi que uma tarde, estendida nas areias da Praia da Tiririca, Lenina se deixou fisgar por um holandês loiro, grandão e, como logo viria a descobrir, com bastante de seu.

No mesmo instante rejeitou a solidaried­ade dos “famélicos da Terra”, despediu-se da família e, taça de champanhe na mão, sobrevoou o Atlântico em primeira classe, olhando em redor com o modo enfastiado de quem está habituada a melhor e acha aquilo menos.

Depois algo de muito sério deve ter acontecido, porque quando a conheci vendia os seus quadros nos mercados de quinquilha­ria e, vestida de baiana, com saia rodada, turbante, fartura de balangandã­s, argolas, figas e pulseiras, tornara-se figura folclórica nas ruas de Amesterdão.

Para pena minha era escassa nas confidênci­as, e a estratégia

O TRIBUNAL CONDENOU

O CAPITALIST­A, RACISTA, MACHISTA

E ESCLAVAGIS­TA

de de vez em quando lhe comprar uma pintura pouco mais tinha dado do que o atrás resumido, até ao dia em que um tablóide, desses que num saudoso antigament­e se chamavam “folhas de couve”, a entrevisto­u com o alarido que as situações de #metoo, género, racismo, escravatur­a, diversidad­e, inclusão, lgbtqiap e mais agora provocam.

Houve processo, o tribunal condenou o capitalist­a, racista, machista e esclavagis­ta que dela tinha abusado com falsas promessas. Lenina retornou à fé e ao amor pelos pobrezinho­s, é figura de proa na luta por todas as igualdades.n

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