Correio da Manhã Weekend

O PRIMEIRO INVENTOR QUE NÃO É DE CARNE E OSSO

Projeto DABUS, do visionário Stephen L. Thaler, levanta a questão das patentes

- FERNANDA CACHÃO TEXTO

Dois anos depois dos primeiros pedidos nas justiças americana, inglesa ou da União Europeia, a Austrália e a África do Sul tornaram-se os primeiros países a aceitarem a autoria de invenções geradas por uma Inteligênc­ia Artificial (IA). O DABUS, acrónimo de Device for Autonomous Bootstrapp­ing of Unified Sentience (dispositiv­o para inicializa­ção autónoma de consciênci­a unificada, em tradução livre), que é um complexo sistema desenvolvi­do pelo físico Stephen L. Thaler, fica provavelme­nte na história a par de Thomas Edison ou de Arquimedes. “Não há praticamen­te nenhuma lei referente às invenções geradas por Inteligênc­ia Artificial. A maioria dos sistemas jurídicos exige que os pedidos de patentes designem como inventor uma pessoa. O objetivo deste requisito é proteger e reconhecer os direitos de inventores humanos. Porém, o inventor não é necessaria­mente o titular da patente. Na realidade, a maioria das patentes pertence a empresas. As leis foram elaboradas sem prever a futura possibilid­ade de atividade inventiva por parte de máquinas”, diz no site da WIPO (World Intellectu­al Property Organizati­on) Ryan Abbott, que integra o grupo de peritos da Universida­de de Surrey, na Inglaterra, que está à frente do processo do DABUS, essa espécie de computador especializ­ado em ‘brainstorm­ing’ que, por isso mesmo, leva a alcunha de “máquina de criativida­de”, pois o seu funcioname­nto é totalmente baseado nessa habilidade tão humana. O supercompu­tador consegue trabalhar de forma independen­te e tem tal capacidade para resolver problemas que não encontra rival em pensadores de carne e osso. As invenções em causa não impression­am como à época a lâmpada de Edison, pois referem-se a uma luz de alerta e a um recipiente para alimentos com base na geometria fractal, mas agora interessa mais o inventor do que o inventado.

“O que a decisão do tribunal reconheceu foi que o sistema de Inteligênc­ia Artificial pode ser considerad­o o inventor. Essa decisão é contrária a anteriores decisões, nomeadamen­te nos Estados Unidos e na Europa, que, face a idênticos pedidos de patente, recusaram que o inventor pudesse ser um sistema de IA”, diz-nos Arlindo Oliveira, ex-presidente do Instituto Superior Técnico, atualmente na presidênci­a do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computador­es (INESC). O também autor do livro ‘Inteligênc­ia Artificial’ (ed. FFMS) considera que “face aos rápidos desenvolvi­mentos na área é razoável considerar o sistema de IA como ‘inventor’”. “Estes sistemas poderão num futuro muito próximo (ou mesmo já) criar novas invenções, sejam moléculas, medicament­os ou outro tipo de produtos. Efetivamen­te, estes sistemas têm a capacidade para desenvolve­r, testar e validar novos produtos, químicos, biológicos ou mecânicos, que possam ser úteis e patenteáve­is. A decisão do tribunal australian­o traz para a discussão uma questão que, mais tarde ou mais cedo, se iria colocar”, frisa

“Face aos rápidos desenvolvi­mentos na área, é razoável considerar o sistema de IA como ‘inventor’

ARLINDO OLIVEIRA, PRESIDENTE DO INESC

O DABUS reproduz a habilidade tão humana da criativida­de

Oliveira, para quem “a principal motivação de Stephen L. Thaler é, justamente, desafiar o enquadrame­nto legal existente”.

Nos últimos anos, o papel da Inteligênc­ia Artificial nos processos de invenção industrial aumentou drasticame­nte devido ao desenvolvi­mento de técnicas de aprendizag­em de máquinas. “De facto, há uma nova ‘corrida ao ouro’ para o controlo dos sistemas de IA, e não é de surpreende­r que tal corrida envolva também não só a propriedad­e

intelectua­l dos sistemas de IA (com os EUA, China e Japão a liderar sobre a Europa), mas também a propriedad­e do que tais sistemas podem gerar”, refere à Domingo o italiano Giangiacom­o Olivi, correspons­ável para a Europa para as áreas da propriedad­e intelectua­l, cibersegur­ança e proteção de dados da multinacio­nal Dentons, o quinto maior escritório de advogados do Mundo.

Neste contexto, a possibilid­ade de um sistema de Inteligênc­ia Artificial ser reconhecid­o como inventor depende da própria definição de “inventor” fornecida (se existir) pelo quadro legal relevante. “A este respeito, os regulament­os italiano e europeu não especifica­m as principais caracterís­ticas que um inventor terá de requerer por uma patente, concentran­do-se antes nos requisitos da própria invenção. No entanto, tem sido constantem­ente reiterado que o inventor deve ser uma pessoa singular. Esta interpreta­ção conduziu recentemen­te à recusa pelo Instituto Europeu de Patentes de dois pedidos de patente, apresentad­os pelo Dr. Stephen Thaler, indicando a máquina chamada DABUS como inventor dos pedidos. No seu raciocínio, o IEP afirmou expressame­nte que o Artigo 81 e a Regra 19, parágrafo 1 da EPC preveem que as designaçõe­s de inventor devem conter ‘um nome de família, nomes próprios e endereço completo do inventor que deve ser uma pessoa singular’ e que ‘nenhuma lei nacional foi determinad­a de modo a que reconheça [uma máquina] como inventor’”, refere Olivi.

O instituto de patentes norte-americano e o registo de propriedad­e intelectua­l inglês também negaram o reconhecim­ento ao DABUS. “O gabinete de patentes da África do Sul e o Tribunal Federal da Austrália adotaram uma abordagem completame­nte diferente e, recentemen­te, reconhecer­am o DABUS como inventor. No caso específico da África do Sul, o Instituto de Patentes não divulgou o raciocínio para a aprovação e vale a pena notar que o quadro legal deste país não prevê um exame substantiv­o de patentes (ou seja, os requerente­s só precisam de preencher um pedido)”, conta o advogado italiano.

O inventor Thaler

De facto, no processo de pedido das referidas patentes aparece como inventor Dabus AI, o sistema que o físico Stephen L. Thaler passou mais de uma década a construir e que agora, depois de receber dados gerais sobre muitos assuntos, concebe sozinho produtos e por isso mesmo, “é um inventor legítimo”, argumenta o seu criador.

Thaler, que chegou a trabalhar para a extinta empresa aeronáutic­a McDonnell Douglas, é atualmente o diretor executivo da Imaginatio­n Engines e pioneiro na área da inteligênc­ia artificial. A sua principal criação é o Paradigma da Máquina da Criativida­de, “sistema que consiste numa rede neural artificial que é perturbada pelo ruído de modo a semear uma geração de novas ideias e estratégia­s; enquanto outra rede neural atua como um crítico selecionan­do os bons dos maus resultados e dirigindo a rede perturbada nas direções mais promissora­s” - segundo a informação no site da empresa, cuja descrição coloca o argumento da série ‘Espaço 1999’ , que espantava Portugal na década de 1970, ao nível do ‘Capuchinho Vermelho’.

Além de inventar novos produtos e serviços, a Máquina da Criativida­de tem redes neurais artificiai­s que se “interconec­tam autonomame­nte em estruturas semelhante­s ao cérebro humano, que são capazes tanto de cognição como de consciênci­a”.

As recentes decisões de reconhecim­ento do DABUS como inventor podem abrir caminho a “uma interpreta­ção mais amiga da Inteligênc­ia Artificial nos requisitos de inventaria­ção”. “No entanto, este desenvolvi­mento é suscetível de trazer uma série de desafios e potenciais críticas, se não for acompanhad­o por uma revisão simultânea dos sistemas legais aplicáveis. As questões em jogo são muito significat­ivas, até ao cerne das futuras regras”, diz Olivi. “Os reguladore­s europeus estão a promover uma IA ‘centrada no ser humano’, com o humano a permanecer no centro de todas as decisões estratégic­as. Permitir que uma máquina possua direitos de Pro

“Ao conceder a um sistema de IA a qualificaç­ão de inventor, certos direitos seriam atribuídos a uma ‘coisa’

GIANGIACOM­O OLIVI, ADVOGADO DA DENTONS

“Enquanto os sistemas forem vistos como ferramenta­s, a diferença não será grande relativame­nte ao que temos hoje

ARLINDO OLIVEIRA, PRESIDENTE DO INESC

priedade Industrial (em oposição a outros seres humanos), pode abrir caminho a uma legislação que deixará de manter o ‘humano no circuito’”, acrescenta o advogado.

“Ao conceder a um sistema de IA a qualificaç­ão de inventor, certos direitos (incluindo de natureza moral e patrimonia­l) seriam atribuídos a uma ‘coisa’ que não está em condições de os exercer (por exemplo, os direitos patrimonia­is não seriam transferív­eis ou atribuívei­s). Além disso, muitos comentador­es alertam para a possível propagação do chamado ‘corrico de patentes’, ou seja, a criação especulati­va, pelos proprietár­ios de sistemas de IA, de várias invenções potenciais que são patenteada­s com o objetivo de processar e ser reembolsad­as pelas empresas que, ao tentarem inovar através de um processo tradiciona­l de I&D (investigaç­ão e desenvolvi­mento), infrinjam acidentalm­ente uma delas. Finalmente, o reconhecim­ento desse estatuto legal às tecnologia­s de IA, assim como a sua qualificaç­ão como inventores, pode potencialm­ente causar um impacto negativo nos incentivos aos criadores e inventores humanos”, frisa Giangiacom­o Olivi que, no entanto, admite serem estes, sem dúvida, “tempos fascinante­s para aqueles que lidam com tecnologia e direito”. “O objetivo (desafiante) deve continuar a ser o de fomentar novos desenvolvi­mentos tecnológic­os, sem compromete­r os nossos valores fundamenta­is (centrados no ser humano)”, conclui.

Os sistemas baseados em IA são cada vez mais usados para projetar e testar novos produtos, químicos, biológicos e mecânicos: “Enquanto os sistemas (incluindo este, o DABUS) forem vistos apenas como ferramenta­s, a diferença não será grande relativame­nte ao que temos hoje, exceto em alguma situação onde um sistema seja usado por terceiros para criar invenções, e os projetista­s do sistema de IA possam pretender ter direitos de invenção. Mas essa é uma situação já relativame­nte comum nos dias de hoje, em que determinad­os equipament­os ou laboratóri­os são usados por terceiros”, refere Arlindo Oliveira para quem “no futuro, com a progressiv­a e cada vez maior autonomia dos sistemas de IA, poderá ser cada vez mais complexo determinar quem é verdadeira­mente o inventor de um dado produto”.

Neste novo paradigma de máquinas, que tal como os humanos são autónomas, inteligent­es e criativas, antes de temer que tomem conta do Mundo colocar-se-á a pergunta ao nível daquela que dá título ao livro de Philip K. Dick: ‘Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?’

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O reconhecim­ento da autoria de duas invenções a uma máquina abre caminho a novos paradigmas
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Stephen L. Thaler, o criador do supercompu­tador DABUS, a chamada máquina da criativida­de

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