UM DISCURSO QUE É UM ALENTO
Os ‘identitarismos’ contemporâneos têm sempre como objectivo suplantar a voz individual pela tirania do grupo
Releio um dos mais famosos textos de Benjamin Constant, em boa hora traduzido e comentado por António Araújo, e confirmo: não envelheceu uma ruga. Envelhecer?
Olho em volta. O mundo oscila entre tribalismos de orientação diversa, esmagando o indivíduo, a sua autonomia e racionalidade.
E então percebo que a história é um eterno retorno porque Constant enfrentou igual dilema no século XVIII. Como sustentar o absolutismo régio numa sociedade comercial e moderna? Não era possível. E como justificar o jacobinismo revolucionário, que tentava reinstalar a liberdade dos antigos (ou, pelo menos, uma interpretação específica dessa liberdade) na complexa, numerosa e sofisticada sociedade francesa de Setecentos? Obviamente, também não era exequível.
Na Antiguidade, “liberdade” era um direito colectivo de participação na vida da ‘polis’ que implicava, não raras vezes, a subjugação do indivíduo à comunidade.
A era moderna, e a “experiência da individualidade” que ela trouxe e consagrou, reformulou o conceito para devolver aos indivíduos, sob a tutela da lei, a fruição de certos direitos irrevogáveis – de pensamento, expressão, associação, etc.
Para Constant, abusos como a censura, a educação estatal ou a pretensão de uma religião “oficial”, se faziam parte da gramática dos antigos, são incompreensíveis no linguajar moderno. E a tentação de os ressuscitar, como aconteceu em França, só podia terminar em sangue.
Mas cuidado: antecipando as preocupações que definiriam a obra de Alexis de Tocqueville, Constant não era cego às perversões do individualismo. O desinteresse e o abandono da “coisa pública” contavam-se entre as principais ameaças à liberdade moderna.
Incompreendida por revolucionários e reaccionários, a obra de Constant, e este discurso em particular, é um alento para quem deplora, como eu deploro, a galeria medonha de “identitarismos” contemporâneos – seja a raça, o género, a nação ou o diabo – que têm sempre como objectivo suplantar a voz individual pela imposição da tirania do grupo.
“A obra de Constant, e ‘A Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos’ em particular, continua incompreendida por revolucionários e reaccionários” Passados dois séculos, este texto não envelheceu uma ruga