QUERIDA, A PANDEMIA ENGORDOU OS MIÚDOS
Confinamentos fizeram subir a balança, sobretudo em famílias mais carenciadas
No final de março pesou-se e tinha mais 10 quilos
ANA, MÃE DE FRANCISCO
Francisco tinha acabado de fazer 16 anos em janeiro deste ano quando a turma do 10.º ano que frequentava entrou em isolamento profilático. Ou seja, quando o Governo decretou o segundo confinamento já o adolescente estava em casa a ter aulas online. E se durante o primeiro as coisas tinham corrido com a normalidade possível, neste segundo fecho das escolas não foi bem assim.
“Acabou o desporto, as aulas de Educação Física no liceu (tinham três vezes por semana) e começou a ‘loucura’: professores online que davam aulas a alunos do 10º ano de robe e de pijama, outros que, em vez de os aguentarem até às 13h00, terminavam as aulas ao meio-dia e tal para irem almoçar mais cedo, enfim... O Francisco falava online com os amigos, jogava, via Netflix, mas um desportista [o jovem faz desporto de competição, além do escolar] se parar engorda. Acresce a isto o facto de ele ter começado a comer imensa porcaria. Eu estava em casa, mas saía algumas vezes e quando chegava ele tinha feito panquecas com Nutella, comia imensas tostas, pedia-me para comprar sumos, arranjava maneira de trazer ice tea para casa, e começou a comer mais e pior - a nossa alimentação é equilibrada, mas o pior era o resto que ele comia. Isto tudo parado, sem desporto e com pouca vontade de sair de casa para ‘passeios higiénicos’, coisa que não acontecia no primeiro confinamento. Chegou uma altura em que eu percebi que seria difícil motivá-lo - a desmotivação era completa. Quando raramente saía (nem que fosse para ir levar lixo à reciclagem) vestia calças e as calças começaram todas a não servir”, conta a mãe, Ana, que em março se apercebeu de quanto o filho engordara. “No final de março pesou-se vestido. Tinha 94 quilos – mais dez do que antes. Falámos os dois sobre isso. Comprei-lhe calças e falei na importância de se mexer. As aulas iam recomeçar a 19 de abril e antes do regresso encomendei online uma série de calças de tamanho acima.”
“Com as escolas fechadas e as crianças em casa, mais sedentárias, com alguma ansiedade, stress, incerteza – tudo fatores que provocam compulsões alimentares e que nos levam a procurar conforto nos alimentos com alguns excessos que nos provocam essas sensações químicas de prazer e de bem-estar”, descreve Mário Silva, presidente da Associação Portuguesa Contra a Obesidade Infantil (APCOI), que ainda durante os confinamentos recebeu muitos pedidos de ajuda.
“Tivemos muitas famílias a procu
Houve crianças que duplicaram o peso
MÁRIO SILVA, APCOI
desesperadas com o aumento de peso dos filhos, mas naquelas situações não havia resposta imediata. Nem consultas presenciais de obesidade havia, foi um verdadeiro caos. A partir de abril voltámos a visitar escolas e assistimos no terreno a situações muito complexas de crianças que duplicaram o peso, situações muito preocupantes para os pais e para os professores”, acrescenta o presidente da associação que existe há dez anos para encaminhar as famílias de crianças com excesso de peso para acompanhamento adequado. Desde 2011, a
APCOI desenvolve um projeto escolar dirigido a crianças do primeiro ciclo e jardins de infância e, em conjunto com outras associações ligadas a este problema de saúde - em Portugal, a obesidade é considerada uma doença crónica -, tem participado em mudanças que têm feito a diferença.
Desde abril de 2019, por exemplo, Portugal tem uma lei que aplica restrições à publicidade alimentar dirigida a menores de 16 anos e que atribuiu à Direção-Geral da Saúde a responsabilidade de definir o perfil nutricional dos alimentos a limitar em matéria de marketing e publicidade dirigida a crianças.
Antes do vírus que virou de pernas para o ar a vida da população mundial, os especialistas em saúde alimentar estavam orgulhosos de Portugal. Depois de anos negros, desde 2008 que se estava a reverter a taxa de excesso de peso e de obesidade infantil. “Antes disso não havia uma grande preocupação com a obesidade, principalmente a obesidade em crianças. Portugal teve muito surar-nos
cesso nesses últimos dez anos porque criou um alerta, as famílias perceberam que havia de facto um problema e a sociedade também se envolveu no problema”, contextualiza Ana Rito, investigadora do Departamento de Alimentação e Nutrição do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e também coordenadora do COSI Portugal, sistema de vigilância nutricional infantil integrado no estudo Childhood Obesity Surveillance Initiative da Organização Mundial de Saúde/Europa. Segundo os dados mais recentes verificou-se, de 2008 para 2019, uma redução de 8,3% na prevalência de excesso de peso infantil (37,9% para 29,6%) e de obesidade infantil de 15,3% em 2008 para 12,0% em 2019.
Madeirenses com mais peso
Em média, revelou o mesmo estudo, os rapazes madeirenses foram os que apresentaram mais peso (27,9 kg) e eram os mais altos (127,4 cm) e os rapazes alentejanos os que apresentaram menos peso (25,4 kg) e menor estatura (124,5 cm). As raparigas do Norte foram as que, em média, apresentaram mais peso (27,0 kg) e as algarvias menos peso (24,7 kg). A região do Algarve foi a que apresentou menor prevalência de excesso de peso infantil (21,8%) e os Açores a que apresentou a maior prevalência (35,9%). A região do Alentejo foi a que apresentou menor prevalência de obesidade infantil, sendo que entre 2008 e 2019 todas as regiões portuguesas apresentaram uma diminuição na prevalência de excesso de peso.
“Estava tudo a correr muito bem... e veio uma pandemia. Temos aqui duas questões: eu não sei se será visível imediatamente o efeito da Covid na obesidade infantil. A literatura e os estudos que estão a ser feitos na Europa e em todo o mundo mostram de facto que a pandemia trouxe maiores erros nos estilos de vida. Erros alimentares e menor prática de atividade física, mas trouxe também maior desigualdade social. As pessoas mais informadas, que tiveram sempre acesso e que não tiveram nenhum constrangimento e não foram tão afetadas pela pandemia, são aquelas que tiveram algumas oportunidades de melhorar o seu estilo de vida. Tiveram mais tempo para cozinhar com os seus filhos, para se preocuparem com a das crianças. Além disso não houve tantas festas de aniversário de crianças, por isso os miúdos não bebiam refrigerantes a toda a hora, houve uma série de correções e oportunidades”, explica Ana Rito, que tirou ainda outras conclusões.
“As famílias mais afetadas foram aquelas que, à partida, tinham menos recursos financeiros. Houve um impacto substancial nestas famílias, que foram as mais afetadas a todos os níveis. Talvez isto não se consiga expressar no espaço de um ou dois anos a nível da obesidade infantil. Aumentaram consideravelmente os erros alimentares: houve muito menos acesso a produtos frescos, houve acesso a produtos mais açucarados, com maior teor de sal e de gordura - aqueles que vêm empacotados, que se podem conservar no congelador e, muitas vezes, os mais acessíveis. Numa altura de confinamento houve de facto uma substituição e uma desorientação nas escolhas alimentares”, conclui, manifestando-se por isso exultante com o despacho publicado dia 17 de agosto no ‘Diário da República’, que reflete as orientações do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, da Direção-Geral da Saúde.
Nele o Governo define a lista dos alimentos proibidos nas escolas, como bolos ou pastéis; salgados; pão com recheio doce, pão de leite com recheio doce e croissant com recheio doce; charcutaria, designadaeducação mente sanduíches ou outros produtos que contenham chouriço, salsicha, chourição, mortadela, presunto ou bacon; sandes ou outros produtos que contenham ketchup, maionese ou mostarda; bolachas e biscoitos; refrigerantes; guloseimas como gomas e rebuçados; tiras de milho, batatas fritas, aperitivos, pipocas doces ou salgadas; sobremesas doces; barritas de cereais e monodoses de cereais de pequeno-almoço; refeições rápidas, como hambúrgueres, cachorros-quentes, pizas ou lasanhas; chocolates; bebidas com álcool; ou gelados, entre outros.
“Estou 100% de acordo com a medida, que até peca por tardia, embora saiba que a maioria das crianças e dos adolescentes sai da escola e vai comer onde quer e lhe apetece. É preciso uma medida mais alargada… mas mexe com muitos interesses, não é fácil”, alerta a pedopsiquiatra Maria de Lurdes Candeias.
O presidente da APCOI concorda e sublinha a sua experiência: “Tivemos no passado muitas associações de pais em guerra quase aberta com as administrações das escolas, cuja justificação para não deixarem de vender estes alimentos muito nocivos para a saúde das crianças era simplesmente que o lucro que isso trazia para o orçamento da escola era muito elevado.”
Um deputado disse, ofendido, que o que os filhos comem só a ele diz respeito
MÁRIO SILVA, APCOI
As famílias mais afetadas pelo excesso de peso foram aquelas que, à partida, tinham menos recursos financeiros
ANA RITO, INVESTIGADORA INSTITUTO NACIONAL DE SAÚDE DR. RICARDO JORGE
“Trabalho com alimentação escolar há mais de 25 anos e é uma vitória a escola tornar-se um espaço mais saudável, porque a escola é um espaço que tem de servir como exemplo. Vai continuar a haver erros alimentares, mas as escolas em Portugal - onde as crianças ocupam a maior parte do seu tempo – têm de ser espaços saudáveis e onde só possam ter opções saudáveis durante o dia. Acho que pode ser um passo importante para se contrariar não só os efeitos que a Covid possa ter tido na saúde nutricional infantil, mas também no caminho que ainda temos a percorrer: nós continuamos nos países com excesso de peso infantil”, continua a investigadora Ana Rito.
Deputado ofendido
Com o regresso às aulas em abril, e já vestido com roupa tamanho acima do que usava antes, Francisco voltou às rotinas. “Começou a sair com os amigos, a andar muito a pé e a mexer-se. Deixou de comer as porcarias da mesma forma. Voltou o desporto e, um mês depois de as aulas começarem, ali a meio de maio, já tinha perdido 12 quilos. Mas acho que mexeu com a autoestima dele, passou um momento muito complicado mas que, felizmente, foi ultrapassado”, remata a mãe do jovem. Mas nem todos os pais concordam com esta mudança de hábitos. Mário Silva, da APCOI, termina com um relato curioso. “Quando fomos levar o nosso ponto de vista ao Parlamento recordo com algum constrangimento que, no final da nossa intervenção, um deputado se levantou muito ofendido e disse: ‘Isso do que os meus filhos devem ou não comer é uma situação que só a mim diz respeito. É uma questão de liberdade e vocês não têm nada a ver com isso.’ Há aqui uma linha muito ténue entre aquilo que são preocupações de saúde e aquilo que é estar a impor, mas há determinados contextos em que faz sentido. É quase um boicote ensinarmos as crianças sobre alimentação saudável e depois a própria escola ser fornecedora, mesmo que por opção da criança, de alimentos não saudáveis.” Será que podemos dizer que existem negacionistas da obesidade?
Muitos vão sair da escola e comer o que lhes apetece
M.L. CANDEIAS, PEDOPSIQUIATRA