Correio da Manhã Weekend

QUE LIBERDADE AOS 15 ANOS?

- VICTOR BANDARRA JORNALISTA ANTIGA ORTOGRAFIA

Aos 15 anos, Ana é uma adolescent­e compenetra­da, senhora de si, às vezes sisuda, apenas para enganar a timidez. Filha única, tem tido uma educação formal mas liberal, porventura “fora da caixa”. O pai, José, informátic­o, é também um liberal expedito, sobretudo na política. Adepto da homeopatia, empedernid­o detractor dos químicos, convenceu a filha e a mulher da bondade das “bolinhas” que curam. Chama-lhes “medicina de prevenção”. Em criança, Ana habituou-se a desdenhar dos comprimido­s e das idas à farmácia. Em casa, só produtos naturais e biológicos. Tudo em nome da saúde e do planeta, contra os conspirado­res malévolos das ciências oficiais e das farmacêuti­cas. A mãe, Luísa, seduzida mas não convencida, foi enganando o marido com umas saltadas com a filha aos médicos “normais” e até à ginecologi­sta que passa receitas. Até porque Ana, fértil logo aos 13 anos, é uma miúda tímida mas namoradeir­a. Personalid­ade afirmativa, toma as suas decisões com a independên­cia possível. E não lhe venha o namorado impingir teorias ou práticas de ouvir falar. “Eu cá sou assim! Quem quer quer, quem não quer não queira!” é o

lema radical da adolescent­e Ana.

Com a pandemia e com o início da vacinação, estala a polémica e até o verniz lá em casa. José, coerente com as suas práticas e teorias em parafuso, declara-se obviamente antivacina. Com o passar dos meses, embebido em conversas mirabolant­es em mirabolant­es canais do Telegram e afins, assume-se como negacionis­ta. É um radical taxativo; quais cientistas, quais virologist­as, quais políticos que só querem enganar o povo! Luísa, a princípio condescend­ente com as manias do marido, começa a preocupar-se. Primeiro, porque José proibiu logo a filha de ser vacinada. “Olha que a vacina tem nanopartíc­ulas que provocam cancro e infertilid­ade! E também provoca coágulos e miocardite­s!” Luísa suspira com as investidas do marido. Quanto a Ana, tem conversado muito com as amigas, nestes dias de ansiedade antes do início das aulas. Todas e todos os seus mais queridos se estão a vacinar, sem hesitações dos pais. Ana sente-se o patinho feio que há-de vir a ser escorraçad­a pelos seus pares. Consultado­s os devidos canais da Net, Ana retira dados fundamenta­is de um artigo de um renomado professor de Bioética da Universida­de de Nova Iorque (Arthur Kaplan). E fixou: “Na vacinação, a formação de coágulos surge em 0,0004% dos casos enquanto na toma de anticoncep­cionais o risco varia entre os 0,05% e os 0,12%”. Ana medita. “Se posso tomar a pílula, que tem mais efeitos secundário­s, sem autorizaçã­o dos pais, porque é que não posso decidir ser vacinada sem o consentime­nto deles?!” Esta semana,

ao jantar, Ana informa o pai. “Vou fazer 16 anos daqui a 15 dias! Primeira decisão: vou tomar a vacina!” José tenta argumentar, sem sucesso. E fica ainda informado de mais uma

coisinha. “E ficas a saber que já tomo a pílula há mais de um ano! E não preciso de ir à farmácia acompanhad­a pelos pais!”

Quem quer quer, quem não quer não queira...

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