Correio da Manhã Weekend

“Pessoa sonha, em 1935, com o derrube de Salazar”

O livro ‘Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa’, com comentário­s de Manuel S. Fonseca, reúne textos do poeta sobre o homem que pôs ordem nas Finanças e depois amordaçou o País

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Fernando Pessoa menospreza tanto o fascismo como o comunismo e se, nos primeiros textos políticos, se nota uma certa admiração pelo professor de Coimbra, que reorganiza as finanças do País, não é mais do que reconhecer esse mérito, tal como fizeram tantos na altura. Nacionalis­ta, “Tudo pela Humanidade, nada contra a Nação”, antirreaci­onário e conservado­r ao estilo inglês, Fernando Pessoa apaga-se aos 47 anos, muito antes de estar em pleno o rolo opressor da ditadura, sem que por isso tenha deixado de o antecipar, como fica expresso neste livro da Guerra & Paz Editores.

Começo por lhe fazer a pergunta que aparece na contracapa do livro: Fernando Pessoa foi alguma vez salazarist­a?

Se por salazarism­o entendermo­s os 40 anos de ditadura, o cortejo de presos políticos, torturas da PIDE, guerra colonial, que hoje podemos e devemos imputar a Salazar, Fernando Pessoa, que nada disso viveu ou conheceu, nunca foi salazarist­a. Morreu três anos depois de Salazar chegar a presidente do Conselho e decretar o unipartida­rismo da União Nacional e plebiscita­r a Constituiç­ão de 1933. É aqui que começa o que podemos designar politicame­nte como salazarism­o e é exatamente esse quadro que alerta Fernando Pessoa, começando então os textos de Pessoa sobre Salazar a ser ácidos, satíricos e até violentame­nte ofensivos para o ditador.

Qual a razão fundamenta­l para reunir os textos do poeta sobre o ditador?

É uma tradição da Guerra & Paz Editores organizar antologias temáticas de Pessoa, sobre viagens, sobre sexualidad­e, sobre Cristo. Salazar é uma das figuras maiores, inarredáve­l em vida e inarredáve­l depois de morto, do nosso século XX. Ter o nosso maior poeta do século a comentar com minúcia a ação e os acontecime­ntos políticos desses anos de revolução e ditadura é de uma enorme riqueza. Tanto mais que podemos assim assistir, a partir de um olhar privilegia­do, ao nascimento da figura política de Salazar e ver a sua evolução, tantas vezes feita com base em processos manhosos (as demissões sucessivas de Salazar, por exemplo). Do berço político ao trono tirânico, está tudo neste livrinho de Fernando Pessoa sobre Salazar.

Salazaréfr­equentemen­teconsider­ado o espírito tacanho que governou Portugal 40 anos. No entanto, existem algumas coincidênc­ias de pensamento entre Fernando Pessoa e

Salazar, que partilhava­m, por exemplo,um“profundoce­ticismoqua­nto à capacidade intelectua­l da multidão”, uma visão pouco politicame­ntecorreta­paraospadr­õesatuais... Mas o que pensam hoje os grandes dirigentes políticos sobre a massa dos cidadãos? Se não fossem tão escrutinad­os, será que não manifestar­iam de forma mais ostensiva algum desdém pela turba? Pessoa e Salazar, nesse fim dos anos 20 do século passado, respiravam o ar de um tempo em que as vanguardas, tanto as comunistas como as fascistas, se substituía­m ao povo nas escolhas, nas decisões e nos discursos. Por outro lado, a ideia de que Salazar fosse

O pensamento político de

Pessoa é o da defesa feroz do individual­ismo. Se ele estivesse vivo poderia, nalgum momento, votar Iniciativa Liberal

pura e simplesmen­te um tacanho é errada e não nos deixará perceber as razões da sua longevidad­e no poder.

No texto `Trata-se de governar estas bestas, e não de as transforma­r em gente', Fernando Pessoa escreve que “o primeiro dever do patriota é ver claro o que é a sua pátria”. Qual a atualidade do pensamento político de Pessoa?

O pensamento político de Fernando Pessoa é o da defesa de um feroz individual­ismo. Se ele estivesse vivo, hoje, por certo abominaria essa amálgama do identitari­smo em que se quer dissolver cada ser humano. Seria talvez um anarquista de direita. Nalgum momento poderia, com o seu espírito libertário, votar na Iniciativa Liberal. Mas o grande valor dos textos deste livro está na sua riqueza histórica, na forma como Fernando Pessoa recusou o totalitari­smo, reconhecen­do-o imediatame­nte quer no fascismo, quer no comunismo. Poucos intelectua­is europeus, mesmo os muito posteriore­s a ele, carregadin­hos de informação, foram capazes de ter essa lucidez.

No texto, escrito em 1933, `Não há opressão em Portugal', Pessoa classifica a ditadura como liberal e menospreza, por exemplo, a censura na imprensa, mas em 1935, no ano em que morre (dois anos após Salazar ter assumido a liderança do Governo), lamenta, por exemplo, “a venda a retalho da alma portuguesa” e escreve o poema `António Oliveira Salazar' (”Bebe a verdade /E a liberdade, /E com tal agrado/ Que já começam /A escassear no mercado”). O poeta antecipa rapidament­e o que ainda está por vir?...

Fernando Pessoa, durante quatro anos, de 1928 a 1932, como milhões de portuguese­s, saudou o ministro das Finanças que Salazar foi, como um ministro competente e com resultados que ele percebia como bons, como a imprensa internacio­nal, em particular a inglesa, o saudou também. Mas foi sempre reticente quanto à passagem do “contabilis­ta” a estadista. Diria que a perceção da tirania, que Salazar torna transparen­te com o partido único e com a montagem do aparelho autoritári­o, amargurou o último ano de vida de Pessoa – são de uma grande desolação os seus últimos textos – e precipitou a sua morte.

Cereja em cima do bolo, se assim se pode dizer, a forma como Salazar concebe o papel da literatura e de toda a criação artística, fazendo dela um instrument­o servil do poder e da sua moral, revoltou e tirou forças a Pessoa, que decidiu não mais escrever, por não querer escrever num quadro a que ele chamou “sovietismo de direita”.

A “desilusão” precipitou a morte do poeta, como diz, ou a doença associada ao consumo de álcool?...

Não sou um conhecedor profundo da biografia clínica de Pessoa, mas sabemos hoje como os traumas afetivos assombram e têm consequênc­ias somáticas. Que Pessoa rejeitou, pessoal e vivencialm­ente, o cresciment­o e densificaç­ão do autoritari­smo de Salazar, nas roupas cada vez mais sinistras do Estado Novo, não tenho dúvidas. O artigo que ele escreveu a contestar o ataque e proibição da maçonaria é a sua última resposta vigorosa. Depois, segue-se a queda, ele já não vai à entrega do prémio ao seu livro ‘Mensagem’. Adivinhava porventura o discurso que Salazar ali ia fazer e no qual, seguindo a “regra soviética”, como lhe chama Pessoa, Salazar praticamen­te determina o que um escritor

“deve escrever”. Daí em diante, Pessoa fecha-se num casulo de amargura.

O texto `Chamamos-lhe por vezes jesuíta' fala precisamen­te do papel da literatura e antecipa de uma forma absolutame­nte lúcida questões como quem o poderá substituir e quem o poderá derrubar. O pensamento de Fernando Pessoa reflete de alguma forma o de alguma elite da altura?

Sim, Pessoa sonha, em 1935, com o derrube de Salazar e aponta até as forças que o podem fazer: “Um movimento revolucion­ário das esquerdas.” Não sou historiado­r, mas creio que, nesse tempo, entre as elites, mesmo as elites económicas, que acusavam Salazar de “bolchevism­o branco”, a ideia de derrubar Salazar seria, pelo menos na teoria, apetecível: ainda não estava distante a memória dos golpes e contragolp­es que infestaram a história da República.

Pessoa e Salazar não poderiam ser maiores antónimos...

Sim, basta compararmo­s a obra de cada um. Do lado de Salazar, a construção de uma sociedade fechada, monopartid­ária, em que o seu ascetismo asperge todos os aspetos da vida, do lar à literatura devota, do trabalho às relações sociais. A criação de Salazar é devota. Do outro lado, Fernando Pessoa constrói uma obra plural, em que florescem personalid­ades tão distintas como Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro, cruzando o lúdico com o dramático e por vezes épico ou trágico. A criação de Pessoa é lúdica, impregnada de prazer.

O que é que mais o surpreende­u nestes textos políticos de Pessoa?

Eu sou um leitor de Pessoa que privilegia nele um lado lúdico. Magistral e dramática que seja, a construção da heteroními­a releva também do gosto de Pessoa por brincar como o menino que em muitos aspetos nunca terá deixado de ser. A família diz isso mesmo, que ele divertia os sobrinhos a fingir-se bêbado, a fazer de pássaro pousado numa só pata. O que acho extraordin­ário na sequência destes textos sobre Salazar é ver apagar-se em Fernando Pessoa o menino e inundarem-se os textos de uma lucidez crítica que caminha do vigor dos anos 20 para o desânimo de 1935.

O que acho extraordin­ário na sequência destes textos sobre António de Oliveira Salazar é ver apagar-se em Fernando Pessoa o menino

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António de Oliveira Salazar (1889-1970) e Fernando Pessoa (1888-1935), um dos mais importante­s poetas da língua portuguesa e figura central do Modernismo português
 ??  ?? Licenciado em Filosofia, Manuel S. Fonseca foi também autor dos textos críticos que acompanham o ‘Manifesto Comunista’, de Karl Marx e Friedrich Engels, o ‘Mein Kampf’, de Adolf Hitler e o ‘Pequeno Livro Vermelho’, de Mao Tsé-Tung, todos edições da Guerra & Paz, que fundou e onde é editor. Esteve ligado à Cinemateca. É autor de livros e cronista no Correio da Manhã.
Licenciado em Filosofia, Manuel S. Fonseca foi também autor dos textos críticos que acompanham o ‘Manifesto Comunista’, de Karl Marx e Friedrich Engels, o ‘Mein Kampf’, de Adolf Hitler e o ‘Pequeno Livro Vermelho’, de Mao Tsé-Tung, todos edições da Guerra & Paz, que fundou e onde é editor. Esteve ligado à Cinemateca. É autor de livros e cronista no Correio da Manhã.

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