JOSÉ GOMES FERREIRA: “PROVA-ME QUE A VIDA É LOUCA”
Poeta militante gritou a sensualidade da mulher
José Gomes Ferreira (1900-1985) foi um poeta, ficcionista e ensaísta
cuja obra sofreu sucessivamente a influência do surrealismo, do romantismo e, sobretudo, do neorrealismo. Denunciou a vida miserável dos pobres num tom apaixonado (“aos berros”, admitiu) que definiu como a “teoria do grito poético” ou a “estética do grito”, com o objetivo de alertar para a injustiça social. Esse grito incluía a denúncia da opressão e da violência sobre as mulheres em geral e as pobres em particular, com sensibilidade especial para as prostitutas. A poesia de Gomes Ferreira canta a sensualidade feminina e nela o erotismo ocupa lugar de destaque, umas vezes com ternura outras com remorso.
O poeta teve como grande referência o pai, o comerciante Alexandre Ferreira, maçon, vereador da Câmara de Lisboa e deputado na I República, fundador dos Inválidos do Comércio e de colónias de férias para crianças pobres. Estudante nos liceus Camões e Gil Vicente, em Lisboa, foi aluno do filósofo Leonardo Coimbra e colaborou na revista literária ‘Ressurreição’, ao lado de Fernando Pessoa. Publicou o primeiro livro de poesia, ‘Lírios do Monte’, em 1918. Colaborou em revistas como a ‘Presença’ e a ‘Seara Nova’ e no jornal neorrealista ‘O Diabo’. Entre 1948 e 1976 lançou vários livros de poesia, reeditados nos três volumes de ‘Poeta Militante’ (ed. Dom Quixote). Depois do 25 de Abril aderiu ao PCP, chegando a ser candidato a deputado. O seu espólio foi adquirido pela Biblioteca Nacional de Portugal em 2010.
Com ternura ou com remorso, o erotismo ocupa lugar de destaque na obra do poeta
Desabotoaram os vestidos para mostrar os seios nus à espera das bocas que voavam
Do livro `Poeta Militante', Vol. I, ed. Dom Quixote
Num carro para Campolide
“Uma mulher de carne azul, semeadora de luas e de transes, atravessou o vidro e veio, voadora, sentar-se no meu colo na nudez reclinada dum desdém de espelhos.
( Mas que bom! Ninguém suspeita que levo uma mulher nua nos joelhos.)”
Do livro `Poeta Militante', Vol. II, ed. Dom Quixote
“Aboliste a noite com o teu orgulho de existires para além dos deuses imperfeitos com rasto de arco-íris...
E surgiste intacta, sem suor nem defeitos, na majestade da pureza que só imagino quando vejo o sol feminino dos teus peitos.”
“De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos, mal viu a menina atravessar a rua, saltou num ímpeto de besouro e despiu-a toda...
E a Que-Sempre-Tanto-Se-Recata ficou nua, sonambulamente nua, com um seio de ouro e outro de prata.”
“Nesta árvore
onde até os pássaros se enforcam nos ninhos há muito que mora uma ninfa de carne incerta fugida da borrasca dos caminhos.
Bato-lhe de manso na casca...
Sou eu, ninfa. Abre. Estamos os dois sozinhos nesta rua deserta.
Sai cá para fora e beija-me na boca.
Prova-me que a vida é louca.”
“Que é isto?
Todas as mulheres na plateia desabotoaram os vestidos para mostrar os seios nus à espera das bocas que voavam na escuridão da sala
– saliva que morde.
Às vezes para completar a música falta apenas que os homens e as mulheres se confundam no deboche de um acorde.”
“Os dedos
dissolvem-se no rosto, na espuma dos cabelos, nas pernas, nos pés, no sexo minucioso...
Tudo o que a volúpia requer para o desenho da água ser mulher.”