O 11 DE SETEMBRO É AINDA UMA FERIDA ABERTA A
Em 2011 a ‘Domingo’ ouviu testemunhos de portugueses que estiveram ligados ao dia mais negro da história da América. Dez anos volvidos desse artigo e 20 anos depois dos atentados
resgatámos os protagonistas. Neste especial sobre o dia que mudou a América e o Mundo, a história do fotógrafo Stan Honda e a opinião do último embaixador português em Bagdade,
Francisco Falcão-Machado
cicatriz continua a doer e sempre que a data se aproxima o coração bate mais forte. “Embora para mim o 11 de Setembro não seja uma vez por ano, é todos os dias. Eu continuo em terapia e posso dizer que só recentemente, há uns três ou quatro anos, é que me comecei a sentir um bocadinho melhor acerca disso, a lidar melhor com os sentimentos, mas a ferida está lá sempre.” Virgínia Ferreira não perdeu só o noivo, David Leamagne, o homem com quem se ia casar, nos atentados que cumprem 20 anos no próximo dia 11. Perdeu a vida que sempre imaginou ter ao lado dele – dos filhos que iam criar à reforma em Portugal, junto às vinhas da família em Anadia.
Virgínia tinha 25 anos, hoje tem 45. Em 2011, nos 10 anos dos atentados que colaram o mundo à televisão a tentar perceber se era um filme que viam ou a tragédia que se veio a confirmar, a ‘Domingo’ já tinha conversado com Virgínia. Agora voltámos novamente à sua procura – saber o que mudou na sua vida desde então, mas sobretudo comprovar que há dores que por muitos anos que passem deixam sempre cicatriz.
Em 2011, Virgínia – que era paramédica na altura dos atentados – contou-nos que se tinha formado entretanto em enfermagem, cumprindo um sonho dos dois. “Agora, 20 anos depois, já tenho o mestrado e o doutoramento. Em 2014 acabei o mestrado em Enfermagem Avançada e o doutoramento em Enfermagem Clínica. A minha especialidade são os Cuidados Intensivos e estou a trabalhar com doentes com cancro do pulmão, mas no auge da pandemia fui mandada para a ala Covid. Eu acho que ele estaria orgulhoso de mim, do meu percurso profissional. E há muitas vezes que eu penso que este percurso tem sido também em parte por ele, penso que ele tem estado a acompanhar este percurso e me tem dado empurrões para me levar onde estou, uma espécie de estrela-guia”, acredita.
“Naquele dia morreram quase 3.000 pessoas de 80 nacionalidades
Era uma terça-feira de sol, dia internacional da Paz no calendário oficial das Nações Unidas, havia 4.546 voos comerciais nos céus dos Estados Unidos. Faltavam 15 minutos para as 9h da manhã num dia que parecia igual a tantos outros quando se começou a escrever uma das páginas mais negras da História, parte de um capítulo que mudaria o mundo. O maior atentado terrorista de sempre perfurava o coração dos EUA e em menos de duas horas as Torres Gémeas do World Trade Center, símbolos do poderio económico do país, e o Pentágono foram atingidos. Em duas horas, as Torres ficaram reduzidas a uma montanha de pó e aço incandescente.
A lista inicial de alvos dos quatro aviões sequestrados por operacionais da organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda incluía, além do World Trade Center e do Pentágono, o Capitólio e a Casa Branca.
O voo 11 da American Airlines, um Boeing 767 que descolou do aeroporto de Boston em direção a Los Angeles com 86 passageiros a bordo, chocou contra a Torre Norte do World Trade Center de Nova Iorque tinha aos comandos Mohammed Atta, um egípcio radicado na Alemanha recrutado pela Al-Qaeda para liderar uma “operação com aviões”.
Era o princípio do ataque a que George W. Bush chamou o “Pearl Harbor do século XXI”, ao mesmo tempo que anunciava que os EUA tinham iniciado uma nova “guerra global contra o terrorismo”. Naquele dia quase três mil pessoas, de 80 nacionalidades, morreram. Virgínia, então com 25 anos, estava no hospital da universidade de New Jersey, onde trabalhava como paramédica, quando o noivo lhe ligou a contar o que tinha acontecido em Nova Iorque.
Mais tarde deixou-lhe uma mensagem. As memórias do último dia na vida do noivo foram-lhe contadas por colegas de trabalho que o viram antes da derrocada da Torre Sul, para onde tinha ido como polícia e paramédico, para controlar a evacuação das pessoas. “Ofereceu-se para ir ajudar as vítimas e sabemos que sobreviveu à primeira torre, apesar de ter ficado ferido, e que continuou a trabalhar em conjunto com os bombeiros na segunda, onde veio a ser encontrado sem vida no dia 14 de janeiro, debaixo de todo aquele entulho, porque quando a segunda torre colapsou David ficou lá debaixo”, contou-nos Virgínia, nos Estados Unidos desde a infância.
Ironicamente, seis meses antes dos atentados, o casal de namorados subira ao topo do World Trade Center, em Nova Iorque. “Foi a primeira vez que o David lá foi. Nesse dia disse-me que era o sítio mais calmo onde tinha estado, que se sentia uma serenidade e uma paz que não existia em nenhum outro lugar da cidade.”
Foi lá que encontrou a morte, mas disso a noiva só soube mais tarde porque passou o dia encarregada dos feridos que não paravam de chegar ao hospital onde trabalhava. Nos intervalos foi tentando telefonar ao noivo – iam viver juntos 15 dias mais tarde – mas só à meia-noite lhe caiu o mundo ao chão. “Fomos ao posto da polícia onde ele trabalhava. Disseram-me que era um dos desaparecidos e desmaiei, não me lembro de mais nada.” Nos dias seguintes só conseguia chorar e dormir, anestesiada que estava pela dor da perda. “Mesmo quando o corpo dele apareceu não encontrei a paz”, disse-nos também há 10 anos. Nessa altura, quando perguntámos a Virgínia se se imaginava a refazer a vida com alguém respondeu-nos “outra pessoa não. Quem sabe um dia o farei”. Repetimos a pergunta agora, em 2021. “Gostava de refazer a minha vida com outra pessoa. E tenho tentado nos últimos (poucos) anos, mas tem sido muito difícil. Há cinco anos eu comparava toda a gente com o David, o David fazia assim, o David fazia assado, ou não comparava mas o David fazia sempre parte e ninguém quer entrar num relacionamento quando há um terceiro elemento, embora ele não esteja cá fisicamente. Tenho tentado mas não tenho conseguido… namorei agora quase um ano e neste caso não foi por cau
“Sinto que ele está perto de mim VIRGÍNIA FERREIRA TINHA 25 ANOS QUANDO PERDEU O NOIVO NO ATENTADO. IAM CASAR
sa do 11 de Setembro mas porque não deu, mas sim, gostava de refazer a minha vida”, responde esperançosa. A caixa onde guardou todo o seu passado com David – filho de um cubano e de uma porto-riquenha – está na casa da mãe de Virgínia, em New Jersey. “Não a abro há 17 ou 18 anos. Tenho andado a pensar abrir mas ainda não decidi, tenho um bocadinho de receio do que vou encontrar, embora ‘converse’ muitas vezes com o David dentro do meu cérebro. Sinto que ele está perto de mim, algumas mais perto do que outras.”
Continua a viver em Nova Iorque. “Não vivo longe do sítio onde ocorreram os atentados, vivo a 15 minutos a pé e vou lá, mas não muito regularmente. Às vezes vou lá e sinto-me um bocado frustrada. Para muita gente aquilo não é mais do que o sítio onde as pessoas vão tirar fotografias e isso mexe um bocado com a minha cabeça, as pessoas vão para ali, falam, riem e é o mesmo que ir fazer isso para um cemitério. Foi ali que morreram tantas pessoas, que tantos cadáveres ficaram soterrados. Mas devia ir mais.”
Naquela mesma manhã que mudou a vida de Virgínia Ferreira, a fotógrafa portuguesa Rita Barros – a viver desde 1980 nos Estados Unidos - preparava-se para sair para trabalhar quando olhou pela janela e viu as torres do World Trade Center, suas vizinhas há anos, em chamas. “Fotografei-as sem saber bem o que estava exatamente a acontecer” (ver caixa).
Passaram-se 20 anos. Há 10 também Rita foi protagonista do tema da ‘Domingo’. Tinha 44 quando deu por si a correr, em pânico, a fugir de uma gigante mão de fumo que engolia tudo à sua passagem. “Os carros ficaram parados nas ruas, vazios, de portas abertas e com os rádios ligados. Foi assim que me apercebi do ataque”, contou-nos em 2011, tinha 54 anos. Hoje, a fotógrafa portuguesa com maior projeção internacional, também professora de fotografia na Universidade de Nova Iorque, tem 64.
“Continuo a viver no mesmo prédio, no mesmo apartamento do mítico Chelsea Hotel, na rua 23 de Manhattan. Continuo a viver no mesmo prédio, tenho por isso a mesma vista que tinha há 20 anos. Fotografei as torres em chamas naquela manhã. Dez anos depois peguei numa foto da torre em chamas que tirei da minha janela e fiz a cores o paralelo entre o que tinha feito antes e como estava na altura.” Pedimos-lhe para fazer uma terceira, hoje, em 2021, ao que Rita acedeu e que publicamos nestas páginas dedicadas ao tema.
“Hoje da minha janela vejo uma nova torre. Nunca pensei mudar. Porque o que aconteceu não tem nada a ver com o meu apartamento em si, é algo para lá de eu estar aqui, não é pessoal. Cada um de nós vai vivendo situações complicadas ao longo da vida e a casa é sempre o porto seguro e para mim foi sempre vista assim, mesmo sendo aqui, em frente ao lugar do atentado do 11 de Setembro. Agora o que está a acontecer é que o prédio onde eu vivo foi vendido e está a ser complicado, querem correr comigo daqui mas eu vou dar luta...”, conta a fotógrafa que expôs, quer nos Estados Unidos quer em Portugal, as muitas fotografias que tirou naquele dia fatídico que “deixou marcas na vida de muita gente”, ela incluída, embora já tivesse sobrevi
“O Mundo mudou naquele dia e eu também PAULO PACHECO, MÉDICO
vido a um incêndio e a um barco à deriva em alto-mar anos antes. Neste momento tem uma exposição em Cascais, na Fundação Dom Luís I, uma série de impressões fotográficas e um livro em forma de acordeão. A esta série juntou-se um conjunto de pequenos vídeos realizados durante os confinamentos que a pandemia de Covid-19 nos impôs a todos.
“Estavam todos mortos”
A última vez que falámos com o médico Paulo Pacheco – nascido na ilha Terceira, nos Açores, e emigrado nos Estados Unidos desde os oito meses – ele ainda não se tinha dedicado à clínica privada como entretanto fez, mas as grandes mudanças foram mesmo as de crescimento profissional. “Vivo no mesmo quarteirão, do outro lado da rua onde vivia naquele dia, no mesmo bairro. Mas abri dois centros de ambulatório em Manhattan e outro mais pequeno muito perto de onde aconteceram os atentados – o Liberty Endoscopy Center.” A este último vai com pouca frequência porque é assolado pelas memórias daqueles dias que tingiram de negro a América e deixaram o mundo com medo, numa desconfiança permanente. No Ground Zero ergueu-se um complexo novo que integra um museu e um memorial às vítimas dos atentados. Batizado como “Refletindo a Ausência”, o monumento consiste numa praça arborizada de quase seis hectares, com duas fontes no local onde assentavam as Torres Gémeas, com água a correr nas paredes interiores e os nomes das vítimas gravados a bronze no rebordo.
“Mesmo que as memórias se tornem mais ténues são impossíveis de erradicar. Eu agora tenho 54 anos, tinha 34. Aprendi muito sobre mim mesmo, aquilo afetou-me de uma forma que eu nunca pensei que pudesse afetar. Eu considero-me uma pessoa forte e sem grandes medos ou ansiedades, mas não gosto de me imaginar a ir lá abaixo, sempre que chego perto o meu estômago revolve-se, vejo outra vez a devastação e o fogo e a morte e os bombeiros e a polícia e os médicos a tentar encontrar pessoas, mas também me vem o cheiro. Naquele dia e no dia seguinte o meu instinto era salvar pessoas, ajudá-las, mas não encontrar nenhuma pessoa com vida foi terrível. O mundo mudou naquele dia e eu também”, reflete o médico que no dia 11 de Setembro de 2001 estava no consultório do hospital a atender pacientes quando o telefone tocou. Era a irmã a perguntar-lhe se estava bem porque parecia que estava a haver um atentado em Nova Iorque. “Nesse segundo, o hospital através dos altifalantes pediu a todos os pacientes não urgentes para abandonarem o edifício e a todos os médicos para se juntarem na ala das urgências. Isto passou-se no New York Presbyterian Hospital-Cornell Campus, que tinha a maior unidade de queimados da cidade e por isso esperava-se que ali acorressem milhares de pessoas vítimas do atentado. Éramos centenas de médicos à espera, mas não devem ter aparecido mais de 12 pessoas. Estavam todos mortos.”
No dia seguinte às 6h da manhã, incapaz de dormir, Paulo Pacheco dirige-se ao local do atentado e, apesar de vedado pela polícia, consegue boleia de um camião dos bombeiros que o deixa mesmo no meio da morte. “Era o apocalipse. Não havia pessoas, eu estava ali sozinho. Os bombeiros deixaram-me lá e continuei a andar, sem humanos em lado nenhum, a tropeçar em todo o tipo de coisas deixadas para trás porque foram apanhadas a meio da tragédia. Lembro-me de ir muito atento para tentar ouvir pessoas que pudessem estar soterradas, e de às vezes parecer que ouvia mesmo vozes, mas afinal não era ninguém. Mas nós não estávamos a salvar ninguém, não havia ninguém para salvar.”
O pai de Paulo Pacheco foi atrás do sonho americano – e conseguiu alcançá-lo em vida – quando quis sair dos Açores, escapar à ditadura e começar do zero na terra das oportunidades. O filho assistiu ao pesadelo há 20 anos. E nunca o vai esquecer, por mais anos que passem.