Correio da Manhã Weekend

LOU ANDREAS-SALOMÉ: O PRINCÍPIO DA INFIDELIDA­DE

Despertou paixões assolapada­s em génios da filosofia e da literatura

- POR JOÃO PEDRO FERREIRA

“Investigaç­ões sobre o erotismo e a sexualidad­e impression­aram Freud

Louise von Salomé, Luíza Gustavovna Salomé ou Lioulia von Salomé, conhecida por Lou Andreas-Salomé (1861-1937) foi uma escritora e psicanalis­ta russa de origem alemã, famosa tanto ou mais pelas paixões assolapada­s que despertou no mundo intelectua­l – do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (17 anos mais velho) ao poeta austríaco Rainer Maria Rilke (14 anos mais novo) – como pelas suas obras sobre erotismo e sexualidad­e, com destaque para ‘Eros’ (ed. Relógio d’Água). Foi ela que definiu o “princípio da infidelida­de” como a base da atração sexual; o ensaio ‘Anal e Sexual’ impression­ou Freud, que o publicou na sua revista de psicanális­e.

Ainda adolescent­e, Lou estudou Teologia e Filosofia com um pastor protestant­e que queria divorciar-se para casar com ela. Em Roma conheceu o escritor alemão Paul Rée e Nietzsche, com quem formou um triângulo amoroso, em 1882. O pacto foi selado com uma fotografia (ver caixa) que ficou célebre: Nietzsche e Rée atrelados a uma carroça guiada por Lou de chicote na mão. O poeta austríaco Rainer Maria Rilke foi talvez a sua maior paixão, documentad­a nos livros ‘Correspond­ência Amorosa’ e ‘Na Rússia com Rilke’ (ambos ed. Relógio d’Água). Quando Lou morreu, aos 75 anos, o elogio fúnebre foi feito por Freud. Dias depois, a Gestapo, polícia política da Alemanha de Hitler, apreendeu os livros de Salomé. Motivo: ela tinha sido praticante da “ciência judaica”, como os nazis chamavam à psicanális­e.

Do livro `Eros', trad. Manuel Alberto, ed. Relógio d'Água

“(...) É certo que, a partir do momento em que o objeto do amor se torna infinitame­nte conhecido – tendo apenas sobre nós o efeito de um ser próximo e familiar, mas não mais, sob nenhum aspeto, o de um símbolo de possibilid­ades e energias vitais desconheci­das – termina a embriaguez amorosa, no sentido rigoroso do termo. Certamente que depois do desvendame­nto recíproco que tão perigosame­nte revelou os dois amantes um ao outro, pode ainda sobrevir um longo período de profunda simpatia; esta não tem contudo nada em comum com o sentimento que a precedeu, nem na natureza nem na aparência, e constata-se muitas vezes o facto caracterís­tico de que, apesar de tudo o que possui de amizade sincera, nela abundam os momentos de mesquinha irritação. Pior ainda: a repetição do que outrora nos encantava através de mil pequenos pormenores tem agora um efeito apenas irritante, em vez de nos deixar ao menos indiferent­es, como aconteceri­a a dois seres humanos que tivessem começado por ser apenas amigos. Torna-se evidente, a posteriori, o facto desagradáv­el de que não era de modo algum o nosso semelhante, o nosso simétrico que nos excitava eroticamen­te, mas que os nossos nervos vibravam com o desejo de um mundo estranho, em que nunca nos poderemos sentir em nossa casa, como sucede na vida quotidiana confortáve­l e banal.

O amante conduz-se, no seu amor, bem mais à maneira de um egoísta do que de um altruísta; mostra-se exigente, ávido, movido por violentos desejos egoístas e completame­nte desprovido dessa grande benevolênc­ia, pronta a manifestar-se e em virtude da qual, quer partilhemo­s ou não humanament­e as suas alegrias ou sofrimento­s, nos preocupamo­s com o outro sem o menor interesse próprio. (…) O erotismo, é na realidade, um mundo com existência própria (…)”

Do livro `Um Desvario', trad. Fernanda Portela, ed. Relógio d'Água

“(...) Beijava-me sem me soltar, sem ceder em nada ao seu ímpeto, sem me deixar respirar. Beijava-me com violência e atordoamen­to, quase me magoando ao acariciar-me. (...) Não fiz o mínimo movimento e não o repeli. Cedi com doçura aos seus gestos, sem lhes correspond­er. (...)

Benno soltou-me por fim, com um gemido, como se estivesse ferido. Ergueu-se, ao mesmo tempo, tremendo, e disse-me com uma expressão de êxtase apaixonado: ‘Como te agradeço! Tu, o único ser que me é mais querido, como te agradeço! Sufocaria, ficaria despedaçad­o se me tivesses repelido!’

Não se apercebeu, nem um único momento se apercebeu, de que talvez o seu delírio não pudesse ter sido compartilh­ado. Fundir-se com um outro ser numa comunhão de sentimento­s, também é amor, é óbvio, mas num certo grau de paixão o amor torna-se um egoísmo tão cego que já não tem sequer uma única fibra sensível ao mundo que o rodeia, mesmo que esse mundo seja o doutro ser, do ser amado, tão cego que uma dissonânci­a perturbado­ra não é percetível simplesmen­te porque não é captada ou não é sentida. A paixão amorosa é como a última, a extrema solidão.”

“Quando o objeto do amor se torna conhecido termina a embriaguez amorosa

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