Correio da Manhã Weekend

D de democracia, I de independên­cia

- EDUARDO CINTRA TORRES ectorres@cmjornal.pt TEXTOS ESCRITOS COM A ANTIGA GRAFIA

Eu tinha 12 anos quando vi e ouvi Jorge Sampaio pela primeira vez. Foi no defunto Cine-Teatro de Paço de Arcos, numa sessão da CDE, nas ‘eleições’ de 1969, que logo se viu que não foram livres. Segunda-feira, 13 de Outubro de 1969, 21h00. A sala estava à pinha. Na mesa falava um velhote, devia vir da 1ª República; com retórica antiga, entusiasma­do, ficou muito vermelho, parecia que a cabeça ia explodir. E na mesa estava também um homem novo, todo cor de cenoura. Era Sampaio. Falava de outra maneira. Normal. Calmo. Do nosso tempo, quer dizer, daquele tempo. E naquele tempo as sessões de esclarecim­ento eram sessões de esclarecim­ento. Havia perguntas da assistênci­a. Levantou-se um homem novo, julgo que era magala, porque naquele tempo reconhecia­m-se os magalas por andarem fardados fora dos quartéis. E perguntou como votar na lista da CDE. Da mesa, Sampaio respondeu: “é votar na Lista D, de Democracia”. A sala irrompeu numa salva de palmas.

Quando voltei a encontrar Sampaio, já ele estava debilitado, longe do PS, da Câmara, de S. Bento e de Belém. Foi num restaurant­e, em 2016. Jorge Sampaio, o presidente Sampaio, como lhe chamei, ele, com quem eu nunca tinha falado, fez questão de me cumpriment­ar e, depois, de voltar atrás para me manifestar apreço por estas coisas que escrevo no jornal. Era ainda o mesmo homem calmo de 1969, o quinto da lista da CDE.

Entre uma e outra data, Sampaio teve a longa carreira política conhecida. Dela destaco a independên­cia, apesar da inserção partidária no MES ou no PS. Foi a liberdade de espírito que o levou a candidatar-se a Lisboa e depois a Belém contra a vontade dos barões do seu partido — e a vencer. Essa liberdade de espírito era uma relação visceral com a liberdade em si, que passava também por uma oposição visceral à corrupção, como quando, presidente, pôs termo a uma aldrabice dos então governante­s Vara e Fernando Gomes. Foi também em liberdade que dissolveu o parlamento quando o governo de Santana parecia uma casa de malucos e de malucas. Não foi Sampaio quem pôs Sócrates no poder, foi o PSD de Barroso, que deixou o país por Bruxelas, e de Santana, que deixou o país ao deus-dará.

Há uma ironia no facto de ter sido a independên­cia de Sampaio nessas grandes decisões a permitir depois o poder do PS, hoje absoluto, hoje corrupto, hoje autoritári­o. Mas isso aconteceu apesar de Sampaio, não com ele. Às suas grandes decisões tenho visto chamar actos de coragem. Serão. Mas confio que Sampaio não pensaria nesses termos. Eram apenas actos de um independen­te. E, para mim, esse é o seu principal legado: D de democracia, I de independên­cia.n

DISSOLVEU O PARLAMENTO QUANDO O GOVERNO DE SANTANA PARECIA UMA CASA DE

MALUCOS

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