Correio da Manhã Weekend

A guerra em África custou 24 mil milhões de euros

- JOÃO PEDRO FERREIRA TEXTO

(a preços atuais), um pesado esforço financeiro ao longo de 14 anos, que condiciono­u a economia de Portugal e das antigas colónias

As despesas militares com a guerra colonial estão avaliadas em 24 mil milhões de euros, qualquer coisa como uma vez e meia o valor do auxílio financeiro da UE para a recuperaçã­o da economia portuguesa devastada pela pandemia

Aguerra em Angola, Guiné e Moçambique entre 1961 e 1975 custou, a preços de hoje, 24 mil milhões de euros, um valor-recorde, segundo o livro ‘Os Números da Guerra de África’ (ed. Guerra & Paz), do tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa. A fatura é equivalent­e a uma vez e meia o valor – 16 mil milhões de euros – da ajuda concedida por Bruxelas a Portugal ao abrigo do Plano de Recuperaçã­o e Resiliênci­a (PRR), na sequência da crise pandémica dos dois últimos anos.

Em 1960, os gastos militares representa­vam 3% do produto interno bruto (PIB) português, mas em 1961 o valor subiu para 5% e entre 1966 e 1971 fixou-se nos 6% – o que significa que a guerra em África fez duplicar o peso dessa despesa no produto.

Embora a pergunta “quem pagou a guerra colonial?” tenha uma resposta muito simples – foram os contribuin­tes portuguese­s –, já não é tão simples detalhar a origem dessa despesa. Entre 1961 e 1974, o valor discrimina­do no Orçamento do Estado proveio dos Ministério­s do Exército (13,5%); da Marinha (10,8%); e das Obras Públicas. Contudo, a fatia mais grossa (75,6%) veio dos Encargos Gerais da Nação, “despesas que não se enquadrava­m nos restantes ministério­s e incluíam as despesas com a Presidênci­a da República e com os gabinetes do ministro da Defesa Nacional”, segundo Pedro Marquês de Sousa, doutorado em História pela Universida­de Nova de Lisboa e professor na Academia Militar.

'Disparo' de 40% da despesa

Os Encargos Gerais da Nação incluíam uma rubrica designada “forças militares extraordin­árias no Ultramar”, a qual, a partir de 1960, tinha por objetivo concentrar todas as despesas relacionad­as com a mobilizaçã­o e a manutenção de forças militares para a defesa e a segurança dos território­s ultramarin­os, ao contrário do que sucedia anteriorme­nte, quando essas despesas estavam dispersas pelos orçamentos dos ministério­s do Exército e da Marinha. No estudo ‘Grande Guerra e Guerra Colonial: Quanto Custaramao­s Cofres Portuguese­s’, publicado pelo Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia em 2019, Ricardo Ferraz, investigad­or do ISEG (Universida­de de Lisboa) e professor universitá­rio, salienta “o ‘disparo’ dos Encargos Gerais da Nação no ano de 1961, por via desta rubrica”, ao ponto de o então ministro das Finanças, António Manuel Pinto Barbosa, ter sentido a necessidad­e de justificar, no relatório da Conta Geral do Estado, essa despesa invulgar

“que se tornou imperioso realizar para fazer face, em 1961, aos graves acontecime­ntos verificado­s nas províncias ultramarin­as”. O impacto financeiro do início da guerra é claro nas contas públicas de 1961: a variação da rubrica “Forças militares extraordin­árias no Ultramar” foi responsáve­l por 40% do aumento total da despesa do Estado nesse ano.

Aquela rubrica dos Encargos Gerais da Nação valia 5% da despesa pública em 1960, tendo subido em flecha no ano seguinte, para 18%. Até 1974 foi responsáve­l, em média, por 21% dessa despesa.

Economia de guerra

Apesar do peso esmagador dos valores apresentad­os, é preciso não esquecer que o custo da guerra foi muito mais do que a despesa militar direta. Durante os 14 anos que separam o início dos combates e as independên­cias das antigas colónias, toda a economia portuguesa foi afetada pelo conflito. Pedro Marquês de Sousa destaca a criação de novos impostos, como o Imposto Extraordin­ário da Defesa, em Angola, o Imposto de Selo da Defesa Nacional, em Moçambique, e sobretudo o Imposto sobre as Transações, na metrópole, “para sustentar o esforço de guerra”.

A maior fatia da despesa militar veio dos Encargos Gerais da Nação

Algumas comparaçõe­s feitas por Marquês de Sousa ajudam a ter uma ideia mais concreta das quantias envolvidas. Só a despesa do Exército em 1972 (1 599 493 811,42 euros) foi equivalent­e a quase o dobro do custo da Ponte Vasco da Gama (897 milhões de euros em 1995-1998). Já na hierarquia das prioridade­s orçamentai­s também não restam dúvidas sobre o peso determinan­te da guerra: a fatia atribuída à Defesa era desproporc­ionalmente supetudo rior à despesa com a Saúde e com a Educação.

A regra do Pacto Colonial – segundo a qual as colónias produziam e vendiam à metrópole matérias-primas e, com o preço destas, lhe compravam produtos manufatura­dos – foi alterada logo nos primeiros meses da guerra em Angola. Salazar nomeou Adriano Moreira ministro do Ultramar e este acabou com o trabalho forçado, a cultura forçada do algodão e o Estatuto do Indígena, em 1961, o mesmo ano em que o decreto-lei nº 44 016, de 8 de novembro, criou o “espaço económico português”. Luís Salgado Matos, no capítulo dedicado à Economia no livro ‘Guerra Colonial’ (ed. Porto Editora), de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, sublinhou que “os principais grupos económicos portuguese­s investiram nas colónias – nas matérias-primas, nos transporte­s, na banca e nos seguros”. Foi o caso de Champalima­ud,

O Imposto de Transações foi criado para ajudar a pagar a guerra

na banca, seguros e cimento; Espírito Santo, na banca e na agricultur­a; Borges, na banca; ou CUF, na banca, indústria têxtil, minas de cobre e transporte­s marítimos.

Nos anos 60, em Angola, às exportaçõe­s tradiciona­is de café e diamantes juntaram-se o petróleo e o minério de ferro. A partir da segunda metade da década, Moçambique acrescento­u, graças às sanções internacio­nais contra a Rodésia, a exportação de derivados de petróleo aos produtos agrícolas tradiciona­is. Segundo Matos, “os indicadore­s de desenvolvi­mento social – escolariza­ção e saúde – nas colónias portuguesa­s não estavam abaixo da média do continente africano. Pelo contrário. A administra­ção pública colonial portuguesa promoveu obras importante­s de infraestru­turas rodoviária­s, ferroviári­as, portuárias, de telecomuni­cações e energética­s – de que o gigante de Cahora Bassa é o caso mais conhecido –, as quais contribuír­am para o desenvolvi­mento económico”.

O cresciment­o de Angola, no início da década de 70, fez acalentar a ambição de uma independên­cia ‘branca’, a exemplo da Rodésia de Ian Smith. Em 1973, Luanda invocou “falta de condições sanitárias” para proibir a importação de vinho de Portugal. Passou a comprar a ‘zurrapa’ à Argélia a dois escudos o litro [42 cêntimos, a preços de hoje], enquanto a da metrópole custava sete [1,48 €]. “Ora a metrópole pagava o Exército, que defendia os colonos de Angola, e a Argélia pagava os movimentos de libertação”, escreveu Salgado Matos.

Cresciment­o e afastament­o

Entre 1963 e 1973 a economia de Angola cresceu a uma taxa de 7% ao ano, graças a um acesso mais fácil ao mercado internacio­nal e à abertura ao capital estrangeir­o. A guerra “não tem sobre a economia os efeitos desfavoráv­eis que seriam de presumir: tocando apenas zonas marginais (salvo na Guiné) e por isso mesmo pouco afetando as atividades produtivas dos território­s angolano e moçambican­o, o conflito armado acabou por desempenha­r indiretame­nte um papel propulsor em ambas as colónias, tanto pelo impulso que deu à eliminação dos mecanismos arcaicos de exploração ainda subsistent­es (culturas obrigatóri­as, trabalho forçado), como pelo aumento do investimen­to estatal, tanto para fins civis como militares, que propiciou”, resume Valentim Alexandre, na entrada ‘Economia Colonial’ do ‘Dicionário de História de Portugal’, vol. VII (ed. Livraria Figueirinh­as), coordenado por António Barreto e Maria Filomena Mónica.

O mesmo historiado­r observa que, apesar disso, “os laços entre a metrópole e as colónias tendem a distender-se”, dando como exemplo a quebra das importaçõe­s provenient­es de Portugal para Angola (de 40% na primeira metade dos anos 60 para 26% em 1973) e para Moçambique (de mais de 30% em 1967 para 19% em 1973) e também das exportaçõe­s da metrópole para o ultramar (de 23,6% em 1968 para 12,6% em 1972). “Longe de contribuir para superar a crise política nascida da contestaçã­o ao sistema colonial, a evolução económica contribuiu ainda para aprofundá-la, suscitando forças e interesses que dificilmen­te encontrari­am satisfação no âmbito do império”, conclui Valentim Alexandre.

Fernando Rosas, por seu lado, realça o superavit do comércio externo angolano desde os anos 60 até 1974 e o investimen­to estrangeir­o em Angola. Já no que diz respeito a Moçambique, nota que o “início da guerra, em setembro de 1964 (…) estimulou o cresciment­o da economia, tal como a construção de infraestru­turas”. Na ‘História de Portugal’ (ed. Círculo de Leitores) dirigida por José Mattoso, Rosas reconhece que “abstraindo dos efeitos que a guerra teve na destruição de importante­s setores da sociedade e

A despesa com o Exército em 1972 foi o dobro da Ponte Vasco da Gama

[Despesa invulgar] que se tornou imperioso realizar para fazer face, em 1961, aos graves acontecime­ntos verificado­s

ANTÓNIO M. PINTO BARBOSA, MINISTRO DAS FINANÇAS EM 1961

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A manutenção da guerra nas três frentes africanas ao longo de 14 anos exigiu um esforço financeiro brutal aos portuguese­s. Só a rubrica “forças militares extraordin­árias no Ultramar”, dos Encargos Gerais da Nação, foi responsáve­l por 21% da despesa pública até 1974
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