Correio da Manhã Weekend

A DUAS SEMANAS DAS ELEIÇÕES AUTÁRQUICA­S,

PS e PSD empataram em câmaras, PCP escondeu foice e martelo e PPM conquistou uma autarquia

- FERNANDO MADAÍL TEXTOS

A DOMINGO LEMBRA O ATO ELEITORAL DE HÁ 45 ANOS, QUE FUNDOU O PODER LOCAL DEMOCRÁTIC­O EM PORTUGAL. NA ALTURA FOI PRECISO ESPERAR QUATRO HORAS E MEIA PARA CONHECER O PRIMEIRO PRESIDENTE DE CÂMARA ELEITO E SÓ NO DIA SEGUINTE SE SOUBERAM OS RESULTADOS FINAIS. OS MAIORES PARTIDOS, DO CDS AO PCP, PASSANDO PELO PSD E PELO PS, TODOS ENCONTRARA­M MOTIVOS PARA CANTAR VITÓRIA

Há 45 anos, os portuguese­s foram três vezes às urnas: para eleger a Assembleia da República (no ano anterior, a primeira votação da democracia foi para a Assembleia Constituin­te, cujo papel era elaborar a nova Constituiç­ão), a 25 de abril; o Presidente da República, a 27 de junho (e nos Açores e na Madeira, em simultâneo, as Assembleia­s Regionais); e, pela primeira vez na História de Portugal, as Autarquias Locais, a 12 de dezembro de 1976.

Nas instalaçõe­s da RTP, já na madrugada de segunda-feira, 13 de dezembro, “folhas de telex com resultados misturavam-se com salsichas de Francfort [sic]”, num ‘cocktail’ que só iria “morrer às cinco e meia da manhã, com a ‘adega’ seca e a ‘despensa’ limpa” (relataria um jornalista do ‘Diário Popular’). No Centro de Imprensa da Fundação Gulbenkian, quando às 7h15 horas o apuramento dos resultados para as Autárquica­s foi interrompi­do para ser retomado às 14 horas, um jornalista estrangeir­o “deixa cair a cabeça sobre o telex e adormece” (‘Diário de Lisboa’). Custa a acreditar que, em 1976, só existisse uma estação televisiva, com imagens a preto e branco, se demorasse quatro horas e meia até se saber quem tinha sido o primeiro presidente de câmara eleito (António Teixeira da Silva, do PPD/PSD, em Mesão Frio) e às 7 da manhã estivessem apuradas pouco mais de metade das freguesias.Nessa altura, em que havia 304 municípios, ainda integrada na divisão administra­tiva de Lisboa, a Amadora era a freguesia mais populosa da Europa – mas só seria concelho a 11 de setembro de 1979 (em 1998, juntavam-se Odivelas, Trofa e Vizela).

Os cidadãos fizeram um serão televisivo – em que os resultados parciais e as entrevista­s com políticos eram intercalad­os com filmes clássicos, gravações do Cascais-Jazz e atuações ao vivo –, mas apenas ficariam a saber, no dia seguinte, que, apesar de terem conquistad­o o mesmo números de câmaras (115), na votação nacional, o PS (33,01%) ganhava, de novo, ao PPD/PSD (24,3%), o CDS tinha mais uma autarquia que a coligação do PCP (36 contra 35), mas menos votos (16,62% para os centristas e 17,2% para os comunistas). E que a grande novidade era o PPM (Partido Popular Monárquico) ter vencido em Ribeira de Pena, com João José Alves Pereira a obter 1500 votos – os monárquico­s apenas se tinham apresentad­o em mais sete concelhos e o seu total era de 7507 votantes. Logo se percebeu que, em certos municípios, mais do que o partido, impera o carisma do candidato.

Esconder foice e martelo

A campanha eleitoral, que começou na terça-feira, 30 de novembro, com a colagem de cartazes, revelava algumas novidades. No total, concorriam 11 partidos e coligações, mas o PRT (Partido Revolucion­ário dos Trabalhado­res) apresentou apenas um candidato à câmara de Lisboa,obtendo 278 votos (0,01%), e o PDC (Partido da Democracia Cristã) só se submeteu a sufrágio em três Assembleia­s Municipais (970 votos no País). Mas os boletins, nestas primeiras Autárquica­s, apresentav­am dois novos emblemas: a FEPU (Frente Eleitoral Povo Unido) e os GDUP (Grupos Dinamizado­res da Unidade Popular).

O PCP “escondia” a foice e o marte

Demorou quatro horas e meia até se saber que o primeiro presidente de câmara eleito foi António Teixeira da Silva, do PSD, em Mesão Frio

lo e iniciava as suas coligações, aliando-se ao MDP/CDE (Movimento Democrátic­o Português) e à FSP (Frente Socialista Popular), com três losangos entrelaçad­os e a sigla FEPU – depois, com outros parceiros, em 1978 passou a ser a APU (Aliança Povo Unido) e, desde 1987, a CDU (Coligação Democrátic­a Unitária). Era uma tentativa de travar a queda eleitoral: mesmo com uma subida entre as duas legislativ­as, passando de 12,46% para 14,39%, perdera o terceiro lugar para o CDS e percebia-se que os menos de dois pontos percentuai­s tinham sido à custa da ausência do MDP/CDE (considerad­o um partido “satélite”, que obtivera, em 1975, 4,14%). E, sobretudo, o desastroso resultado da candidatur­a presidenci­al de Octávio Pato, que ficou em último, apenas com 7,59% – o esquerdist­a Otelo Saraiva de Carvalho teve mais do dobro. Mesmo que o discurso oficial sublinhass­e uma abertura das listas do ‘Povo Unido’ a independen­tes e até

Mais do que o partido, impera o carisma do candidato

a pessoas do PS, a opinião geral era a sintetizad­a por Sousa Franco (então do PPD/PSD): a “FEPU é um disfarce do PCP”.

Além dos maoístas MRPP (Movimento Reorganiza­tivo do Partido do Proletaria­do) e PCP (m-l), Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista) – impedidos de concorrer nas primeiras eleições, durante o ‘Verão Quente’ enfrentara­m os “sociais-fascistas” do PCP e seus aliados, juntando-se a PS, PSD e CDS no

apoio à candidatur­a presidenci­al de Ramalho Eanes –, da extrema-esquerda só se conheciam dois partidos trotskista­s. O seu “objectivo prioritári­o” era “a derrota do PSD e CDS”, mas os resultados seriam irrisórios: a LCI (Liga Comunista Internacio­nalista) somava os seus 3464 votos (0,08%) aos 278 do PRT (0,01%) e, em 1978, fundiram-se para constituir o PSR (Partido Socialista Revolucion­ário) – que, em 1999, com a UDP (União Democrátic­a Popular) e a Política XXI, estaria na base do atual Bloco de Esquerda.

O que aparecia era o símbolo GDUP, uma frente eleitoral de apoio a Otelo nas Presidenci­ais, que tinha juntado desde a UDP ao MES (Movimento de Esquerda Socialista), quando o ícone militar da esquerda revolucion­ária garantiu o segundo lugar, com a expressiva votação de 16,22%. Mas, nestas Autárquica­s, quedavam-se pelos 2,49%, elegeram apenas cinco vereadores no País e não podiam cumprir a sua palavra de ordem: “Em cada junta, em cada câmara, o povo é quem mais ordena.” O semanário ‘Página Um’, que assumia a derrocada (“Campanha GDUP não convenceu”), justificav­a-se: “Como tínhamos previsto, ganhou as eleições quem tem muito dinheiro, muita prática desta máquina infernal que é pôr papelinhos nas chamadas urnas e, sobretudo, quem tem muita ‘lata’. A ‘lata’ suficiente para enganar os trabalhado­res, para explorar o obscuranti­smo das massas.”

Abstenção assusta Natália Correia

No frio mês de Natal, e após um ano agitado (dos atentados bombistas à carestia de vida), apesar de não ter havido futebol e a caça ser proibida nesse domingo, a abstenção era tão elevada que preocupou Natália Correia. A poetisa, diretora da revista ‘Vida Mundial’, sentenciav­a: “O maior ‘partido’ português vive na clandestin­idade.” Os 35,34% representa­vam muita gente, face aos 8,34% para a Assembleia Constituin­te, aos 16,47% registados nas Legislativ­as, aos 24,53% que não votaram nas Presidenci­ais. E, perante “mais de 2 milhões de votantes [que] viraram as costas ao escrutínio”, Natália Correia alertava para os perigos desse novo maior partido político: “Sem sigla nem endereço.” Para se comparar com a atualidade: as Legislativ­as de 2019 tiveram 51,40% de abstencion­istas, as Europeias do mesmo ano registaram 69,25% e nas Presidenci­ais de 2020 a taxa foi de 54,59%.

A abstenção nas primeiras Autárquica­s também foi um dos temas de conversa nas salas, corredores e estúdios da RTP. Além dos líderes dos principais partidos, passaram por ali militares como Vítor Alves, Vasco Lourenço e Jaime Neves, os ministros Firmino Miguel, Costa Brás e António Barreto, dirigentes partidário­s como Basílio Horta (CDS) ou Igrejas Caeiro (PS). Nem todos os que se dirigiam para o estúdio 4 se detinham a bebericar naquela frascaria descrita no

O comum dos cidadãos verificou como os números podem utilizar-se conforme a conveniênc­ia de cada qual

REPORTAGEM DO ‘DIÁRIO POPULAR’

‘Diário Popular’: “o Porto seco, os vermutes, o gin tónico e o Madeira”. O socialista Jorge Campinos informava, como se fosse o símbolo de um virar de página na História, que o PS tinha vencido em Santa Comba Dão – a terra de Salazar. O deputado único da UDP, Acácio Barreiros, e o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, “cruzaram-se (sem se olharem) no apertado corredor que liga o estúdio à porta que dá para o pátio”.

Apesar de ainda não dispor dos re

O maior ‘partido’ vive na clandestin­idade: mais de dois milhões de votantes viraram as costas ao escrutínio

NATÁLIA CORREIA, POETISA E DIRETORA DA REVISTA ‘VIDA MUNDIAL’

sultados finais, o vespertino (jornal que estava à venda à tarde, ao contrário dos matutinos, disponívei­s logo de manhã) ‘A Capital’ já publicava entrevista­s com os presidente­s socialista­s de Lisboa e do Porto: Aquilino Ribeiro Machado, filho do escritor de ‘Terras do Demo’ e de ‘Por Quem os Lobos Uivam’ (“Tudo faremos para pôr em prática o Programa do Partido Socialista”); e Aureliano Capelo Veloso, irmão do brigadeiro Pires Veloso, o “vice-rei” do Norte na altura do 25 de Novembro (“Se ganhasse um partido de direita correríamo­s o risco de uma ditadura”).

Ninguém tinha perdido

Ao contrário do que, nos tempos mais recentes, se tornou um costume, com os líderes partidário­s a assumirem os maus resultados, naquele tempo, ouvindo os vários intervenie­ntes, parecia que ninguém tinha perdido as eleições. O primeiro-ministro do PS, Mário Soares, garantia que “o facto de os grandes municípios do País [Lisboa, Porto, Coimbra, Faro, Setúbal, etc.] serem ganhos pelo Partido Socialista representa para o Governo uma vitória indiscutív­el”.

O presidente do PPD/PSD, Sá Carneiro, mostrava-se convicto de que o seu partido saía “francament­e reforçado pelas presentes eleições”. E sugeria que a “alternativ­a ao Governo PS é um Governo da confiança do Presidente da República” – três anos volvidos, Ramalho Eanes seria o seu

Em Lisboa ganhou o filho do escritor Aquilino Ribeiro

maior adversário político. O vice-presidente do CDS, Amaro da Costa, interpreta­va os números como uma contestaçã­o: “Os resultados eleitorais são também uma derrota para o Governo” – e, 14 meses depois, estava a ser negociado o Executivo PS-CDS.

O secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, considerav­a que os números no Alentejo, com o mapa pintado de vermelho, eram votos contra o acabar da Reforma Agrária: “Política do ministro [da Agricultur­a, António] Barreto foi derrotada.” A UDP, que integrava os GDUP, sustentava que, nessas eleições, “o nosso povo recusou o regresso ao passado negro”.

Na noite seguinte à do escrutínio, o redator do ‘Diário Popular’ que fez a cobertura das três horas do “animado debate” televisivo com Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral, resumia este estado de espírito vigente: “Os representa­ntes partidário­s considerar­am, cada um por si, mas todos na generalida­de, que o partido que representa­vam havia conquistad­o posições, quer percentuai­s, quer de mandatos efetivos, quer até pontuais, em relação a certas datas anteriores, mas os êxitos apresentad­os por cada um viriam a ser, depois, comentados criticamen­te pelos restantes. E não foi certamente sem pasmo que o comum dos cidadãos verificou como os números, sendo iguais, podem utilizar-se conforme a conveniênc­ia de cada qual...”

Um famoso 'sketch' televisivo da época era ‘Senhor Feliz e Senhor Contente’, protagoniz­ado pelo consagrado Nicolau Breyner e pelo principian­te Herman José. E o semanário ‘O Jornal’ aproveitou para fazer um título sobre as Autárquica­s na primeira página da edição de 17 de dezembro: “Depois das eleições, como vai este país? A esquerda está contente e a direita feliz.”

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 ??  ?? Ramalho Eanes, então Presidente da República, e a mulher foram recebidos por uma multidão à chegada à secção de voto
Ramalho Eanes, então Presidente da República, e a mulher foram recebidos por uma multidão à chegada à secção de voto
 ??  ?? Da esquerda para a direita, Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal no estúdio da RTP, na noite das primeiras eleições autárquica­s em Portugal
Da esquerda para a direita, Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal no estúdio da RTP, na noite das primeiras eleições autárquica­s em Portugal
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