Correio da Manhã Weekend

GOURMET À MODA DA PRAIA!

- VICTOR BANDARRA ANTIGA ORTOGRAFIA

Irene é filha, neta e bisneta de pescadores. Nasceu na praia, mas nunca foi a omar. Ou antes, nunca entrou mais de uns 20 metros mar adentro,

arregaçada­s as saias. Pesca, mar longe, sempre foi mister de homens ou de rapazes feitos homens. Mas do que o mar dá, seja peixe ou marisco, sabe Irene tudo e mais alguma coisa. São mais de 70 anos a virar peixe e a atiçar as brasas. E ri-se à socapa quando identifica a olho o tamboril no arroz de marisco, impingido ao turista e ao citadino como lagosta. E não vai na conversa do linguado que afinal é palmeta, ou do charroco baptizado de tamboril. Irene sempre acrescento­u o peixe aos outros três prazeres obrigatóri­os da mesa do povo, o pão, o vinho e o queijo, que o grande escritor catalão Vázquez Montalbán apontava como “comidas de peregrinos e de pobres”. Irene, senhora da sua cozinha, vai seguindo com irónica atenção os programas de culinárias, gastronomi­as, vinhos e restaurant­es que enxameiam os canais de TV durante o Verão; e acaba muitas vezes chateada por comer gato por lebre ao escutar as maiores tontices sobre o prato típico daqui, a caldeirada típica dacolá e o único restaurant­e do País onde servem o verdadeiro leitão à Bairrada, com a inevitável pergunta do narrador: “Então diga-me lá, Dona Maria! Só aqui entre nós! Qual éo segredo ?” Irene acaba por encolher os ombros, divertida, quase tão divertida como quando escuta as perguntas tolas dos seus compatriot­as nos restaurant­es, do tipo “a musse é

caseira?” ou “o peixe é fresquinho?”, como se o dono alguma vezres pondes seà altura, do género :“Não senhor! Juro! Aqui amusseé sempre de pacote!”, ou simplesmen­te “aqui não entra peixe fresco, era o que faltava!” A verdade é que vai havendo mais teólogos da gastronomi­a do que cozinheiro­s. Vázquez Montalbán, amante da cozinha honesta, escreveu um livro com um título enganador :‘ Contra osGourmets!’ E leque se questionav­a: “É a gastronomi­a a arte de se fazer da necessidad­e (alimentar) uma virtude? Ou é simplesmen­te uma metáfora exemplar de hipocrisia da cultura?”

Irene, cozinheira virtuosa e sem hipocrisia­s, gosta de provar da cozinha alheia. Este Verão, com o marido, Luís, voltaram a dar as suas voltinhas pelo País, sem nunca se afastarem muito das praias e do mar, para não se sentirem claustrofó­bicos. E até visitaram um ou dois restaurant­es que entraram na moda via TV. Como sempre, Irene fez as suas peixeirada­s favoritas nos restaurant­es de praia. “Está-me a dizer a mim... a mim... que este peixe é de hoje?” E Luís, envergonha­do, a pedir calma. “Pede outra coisa!” E lá vem uma dose de amêijoas muito pouco cristãs! E Irene a dar-lhe, e Luís a encolher-se. “Esta amêijoa é da ria, diz o senhor! Deve é ter vindo a nadar do Vietname...” No último dia de férias, Luís convenceu Irene a esquecer peixe e marisco e a pedir carne. Irene, contrariad­a, lá aceitou um cabritinho no forno. Fumegante, com todos os matadores, o bicho chegou à mesa. Irene aspirou o aroma e ia a levantar o braço para o empregado. Luís atalhou.

“Vais perguntar se o cabrito é fresco, é!? Não percebes nada de cabritos! Come e cala-te!”

Há mais teólogos da gastronomi­a do que cozinheiro­s...

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal