GOURMET À MODA DA PRAIA!
Irene é filha, neta e bisneta de pescadores. Nasceu na praia, mas nunca foi a omar. Ou antes, nunca entrou mais de uns 20 metros mar adentro,
arregaçadas as saias. Pesca, mar longe, sempre foi mister de homens ou de rapazes feitos homens. Mas do que o mar dá, seja peixe ou marisco, sabe Irene tudo e mais alguma coisa. São mais de 70 anos a virar peixe e a atiçar as brasas. E ri-se à socapa quando identifica a olho o tamboril no arroz de marisco, impingido ao turista e ao citadino como lagosta. E não vai na conversa do linguado que afinal é palmeta, ou do charroco baptizado de tamboril. Irene sempre acrescentou o peixe aos outros três prazeres obrigatórios da mesa do povo, o pão, o vinho e o queijo, que o grande escritor catalão Vázquez Montalbán apontava como “comidas de peregrinos e de pobres”. Irene, senhora da sua cozinha, vai seguindo com irónica atenção os programas de culinárias, gastronomias, vinhos e restaurantes que enxameiam os canais de TV durante o Verão; e acaba muitas vezes chateada por comer gato por lebre ao escutar as maiores tontices sobre o prato típico daqui, a caldeirada típica dacolá e o único restaurante do País onde servem o verdadeiro leitão à Bairrada, com a inevitável pergunta do narrador: “Então diga-me lá, Dona Maria! Só aqui entre nós! Qual éo segredo ?” Irene acaba por encolher os ombros, divertida, quase tão divertida como quando escuta as perguntas tolas dos seus compatriotas nos restaurantes, do tipo “a musse é
caseira?” ou “o peixe é fresquinho?”, como se o dono alguma vezres pondes seà altura, do género :“Não senhor! Juro! Aqui amusseé sempre de pacote!”, ou simplesmente “aqui não entra peixe fresco, era o que faltava!” A verdade é que vai havendo mais teólogos da gastronomia do que cozinheiros. Vázquez Montalbán, amante da cozinha honesta, escreveu um livro com um título enganador :‘ Contra osGourmets!’ E leque se questionava: “É a gastronomia a arte de se fazer da necessidade (alimentar) uma virtude? Ou é simplesmente uma metáfora exemplar de hipocrisia da cultura?”
Irene, cozinheira virtuosa e sem hipocrisias, gosta de provar da cozinha alheia. Este Verão, com o marido, Luís, voltaram a dar as suas voltinhas pelo País, sem nunca se afastarem muito das praias e do mar, para não se sentirem claustrofóbicos. E até visitaram um ou dois restaurantes que entraram na moda via TV. Como sempre, Irene fez as suas peixeiradas favoritas nos restaurantes de praia. “Está-me a dizer a mim... a mim... que este peixe é de hoje?” E Luís, envergonhado, a pedir calma. “Pede outra coisa!” E lá vem uma dose de amêijoas muito pouco cristãs! E Irene a dar-lhe, e Luís a encolher-se. “Esta amêijoa é da ria, diz o senhor! Deve é ter vindo a nadar do Vietname...” No último dia de férias, Luís convenceu Irene a esquecer peixe e marisco e a pedir carne. Irene, contrariada, lá aceitou um cabritinho no forno. Fumegante, com todos os matadores, o bicho chegou à mesa. Irene aspirou o aroma e ia a levantar o braço para o empregado. Luís atalhou.
“Vais perguntar se o cabrito é fresco, é!? Não percebes nada de cabritos! Come e cala-te!”
Há mais teólogos da gastronomia do que cozinheiros...