‘SEX SYMBOL’ TEVE DE RENASCER VÁRIAS VEZES
Sharon Stone, dona do descruzar de pernas mais famoso da história do cinema, abriu o livro da sua vida e encheu as páginas da autobiografia intimista com as dores que viveu, a doença que ultrapassou e as muitas polémicas com o carimbo de Hollywood
Acena não era aquilo que lhe tinham dito que seria. “Não se vê nada, é só preciso que tires as cuecas porque o branco reflete a luz, o que faz com que se vejam as cuecas”, disse-lhe o realizador enquanto a filmava. Só ficou a saber da nudez frontal explícita no dia em que a equipa se reuniu para ver o resultado final. “Ali estava eu com as minhas partes. Tinha de tomar decisões. Fui à sala do projetor e esbofeteei o Paul [Verhoeven], saí, fui para o meu carro e liguei ao meu advogado, Marty Singer.” Mas Sharon Stone, que usava um curto vestido branco numa sala de interrogatórios policiais no filme ‘Instinto Fatal’ acabou por permitir que o mais famoso des cruzar de pernas da história do cinema chegasse ao grande ecrã. Tinha 32 anos e já participara em 18 filmes “da treta”, que não lhe tinham dado nem fama nem fortuna. E pensar que o seu agente à época a informara de que ninguém a contratava porque todos diziam que não era sensual. “Eu não era, como se dizia em Hollywood nessa época, ‘fodível’.”
“Se continuas a deixar a tua sexualidade à porta, como esperas conseguir ganhar algum papel?”, perguntara-lhe também o professor de teatro, seis semanas antes de ser selecionada para o filme.
“Depois de ‘Instinto Fatal’ ter estreado no Festival de Cinema de Cannes, em 1992, os meus queridos amigos Bill e Nancy convidaram-me para passar uns dias com eles numa casa maravilhosa de uns amigos deles, na Riviera. Foi aí que tive a minha primeira aula de ténis. Começava então a perceber: é isto que os ricos fazem. O que eles também fazem, e que eu finalmente podia fazer e fiz, era pagar a hipoteca dos meus pais. Enviei um pagamento anónimo para cobrir os 17 mil dólares [14,5 mil euros] que ainda tinham em dívida da casa”, conta a atriz na autobiografia ‘A Beleza de Viver Duas Vezes’ (Ed. Guerra e Paz), um livro escrito num tom intimista onde se mostra mais nua do que no filme que a tornou famosa. A obra passa em revista seis décadas de vida e fala de muitas dores
– mas não da última, mais recente do que a publicação. No último dia de agosto, o sobrinho e afilhado da atriz, River, de apenas 11 meses, morreu por falência múltipla de órgãos, o que devastou Sharon e comoveu a Internet: a artista pediu aos seguidores para rezarem pelo menino, enquanto ainda havia alguma esperança.
Antes da fama
Sharon acabou por se revelar uma atriz talentosa: provam-no as 41 nomeações e 10 galardões, entre os quais um Globo de Ouro pelo desempenho no filme ‘Casino’, de Martin Scorsese. Mas ela cresceu a odiar a mãe - incapaz de demonstrar afeto -, a levar pancada do pai, a ser abusada sexualmente pelo avô, tal como a irmã mais nova, em Meadville, na Pensilvânia, uma cidade portuária com “prostitutas, heroína e tudo o que de mau era para ali atirado, sem ninguém olhar para trás”. Foi vítima de ‘bullying’ no liceu – era demasiado bonita e demasiado esperta (tem um QI de 154) - e na adolescência arranjou um biscate a vender panelas porta a porta, ganhando algum dinheiro extra que deu à minha mãe para comprar uma cozinha nova. O primeiro emprego oficial foi no McDonald’s, “onde era a menina dos fritos, dos batidos, das tartes e da caixa”, mas o gerente assediava-a, o que a fez mudar de restaurante e de função: passou a ser empregada de mesa.
Na faculdade geria a sala de bilhar e o bar, mas sempre quis seguir uma carreira no mundo do cinema. Foi Miss Pensilvânia aos 17 anos e começou por ser modelo antes de chegar ao cinema. Ficou grávida do primeiro namorado aos 18 anos e abortou por opção dos dois; mais tarde sofreu três abortos espontâneos, de gravidezes planeadas, aos cinco meses e meio de gestação, o que a levou a adotar três crianças, entre 2000 e 2006. Ficou sem a guarda de Roan, o mais velho, para o segundo marido, quando o menino tinha 8 anos. “Sim, perdi muito: a carreira, as poupanças, a guarda do meu filho, o meu suposto casamento, a hipótese de retomar a carreira, a minha capacidade de olhar dois minutos para uma página de diálogos e memorizá-la de imediato, e a beleza luminosa de que eu nunca me apercebera.” Muitas destas perdas devem-se ao AVC hemorrágico que sofreu em 2001. Na altura, a recuperação parecia muito pouco provável, mas a atriz conseguiu não só fintar a morte como as incapacidades severas que se anteviam.
“Voltei a ouvir, embora por vezes tenha de virar um pouco a cabeça, para me abstrair dos sons que interferem com o que quero ouvir (...). Demorei um ano para voltar a escrever (...). A gaguez parou ao fim de quatro ou cinco meses (...). A minha visão em profundidade também voltou. A memória, de curto e longo prazo, demorou mais tempo a recuperar (...). Foram precisos vários anos, e eu tive de estar às portas da morte para que reencontrasse o meu próprio caminho”, escreveu.
No mesmo ano descobriu dois tumores benignos na mama, mas teve de se submeter a uma cirurgia de reconstrução. “Um deles era gigante, maior que a mama” – e o cirurgião não se limitou a reconstruir o peito da atriz, aumentou-o. No livro, Sharon conta que quando perguntou ao médico porque fizera isso, ele respondeu que achou que ela “iria ficar bem com mamas maiores e melhores”, o que muito desagradou à atriz, que nunca se reviu no novo corpo. Mas que, apesar de tudo, tem conseguido superar todas as provações num meio que prefere o ‘glamour’ ao fracasso.
Durante sete anos, enquanto recuperava do AVC e das várias ruturas emocionais que se lhe seguiram, Hollywood pô-la de parte sem cerimónias. Numa entrevista, comparou essa experiência a ser “atirada de um TGV em andamento”. Para reconquistar a sua carreira, a atriz teve de “rastejar por uma montanha de vidro partido, regressar ao comboio de alta velocidade que segue a 1,5 milhões de quilómetros por hora, e abrir caminho a partir do vagão do gado”. Uma descrição que liga bem com a lenda da Fénix renascida, até porque Sharon várias vezes teve de renascer das cinzas num meio ingrato. Foi, sem êxito mas por várias vezes ao longo da carreira, chantageada para dormir com colegas, para “melhorar a química no ecrã”.
“Agora, sinto-me menos pressionadaquandorepresentoumpapel,poisjá não é todo o meu mundo (...). Mas todos os trabalhos são bons, mesmo que não sejam um êxito de bilheteira ou até que todo o projeto falhe. Mesmo com os piores realizadores, como aquele que não filmava comigo porque eu me recusei a sentar-me no seu colo para me dar indicações cénicas”, partilha a
atriz na biografia, revelando que o episódio, “recorrente”, aconteceu “num estúdio de cinema multimilionário” e que ninguém presente disse ou fez alguma coisa para o impedir.
“Fui punida por ter mudado as regras de como vemos as mulheres e estou ciente de que, ao escrever este livro, poderei ser punida de novo. Mas desta vez não tenho medo”, garante Stone, que se tornou ativista pelos direitos das mulheres e abraçou causas humanitárias, nomeadamente a luta contra a sida – que lhe valeu em 2013 o
Prémio da Paz, atribuído pelos laureados com o Nobel da Paz. Em 2016 também usou da palavra para pedir a Obama, então presidente do seu país, ajuda para libertar um preso político condenado por promover a violência nos protestos contra o governo de Nicolás Maduro, na Venezuela. Em agosto de 2020, depois de perder a avó e a madrinha para a Covid-19 e de ver a irmã e o cunhado em perigo de vida por causa do mesmo vírus, apelou aos americanos para “não votarem num assassino”, referindo-se a Donald
Trump. Já este ano revelou estar “ameaçada” de perder o emprego por insistir na vacinação num vídeo do sindicato SAG-AFTRA (Screen Actors Guild - Federação Americana de Artistas de Televisão e Rádio).
Hoje tem 63 anos. Com 61 recriou o polémico descruzar de pernas ao receber o galardão de Mulher do Ano. Apesar de ter roupa interior por baixo do vestido, deixou novamente a audiência em brasa. E provou que um ‘sex symbol’ é eterno, por muitas pedras que o façam tropeçar.
O realizador não filmava comigo porque recusei sentar-me ao colo dele