OS RETRATOS DOS ANTEPASSADOS
Moledo regressa à sua condição de ‘reserva nacional de iodo’
Nos seus tempos mais discretos, já em 1970, quando regressava das férias em Ponte de
Lima e se sentia finalmente sensibilizado pela folhagem das árvores depenadas pelos primeiros ventos de Outono, o velho Doutor Homem, meu pai, inventou que “a velhice era um termo de residência”.
A frase tinha um certo efeito. Eu compreendia-a como uma declaração amável e simpática em relação à passagem do tempo, acolhendo aquela idade madura e definitiva da qual não se regressa. Ou seja, a velhice não só proporcionava alguma tranquilidade como também indicava à morte o lugar onde, chegado o dia, teria de vir buscar-nos. Cinquenta anos depois, estes pensamentos continuam a acompanhar bem o Outono, com a sua carga de nuvens tépidas e macias, enovelando-se sobre as colinas escuras do Minho. Numa família pouco preocupada com o destino, relapsa em relação aos debates eleitorais, indiferente acerca da “prática da cidadania”, as observações do velho Doutor Homem eram consideradas uma consequência das mudanças meteorológicas e não o resultado de uma eventual meditação sobre a fragilidade das coisas.
Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, não apoia estes estados melancólicos, que acha (com razão) um luxo de preguiçosos que não têm de trabalhar para que a vida não seja uma travessia penosa – e que acontece geralmente quando os derradeiros hóspedes do Verão regressam ao mundo exterior, deixando os pinhais de Moledo entregues à sua sorte. Há, evidentemente, a grandiosidade dos areais e o monstro cinzento de Santa Tecla do outro lado daquilo que, com o tempo, me atrevi a considerar “a grande baía” – mas a verdade é que os hóspedes partiram, um atrás do outro ou aos pares, prometendo voltar, e deixando a casa com o vago aspecto de ser uma parte recôndita do deserto de Moçâmedes (onde tivemos um tio militar do ramo de Engenharia, e cujas grandes paixões foram o oboé e a construção de pontes).
Encerrando-se a partir de meados de Setembro o plano meteorológico do Verão – mesmo que o calor persista e a minha sobrinha Maria Luísa continue a ir à praia –, Moledo regressa à sua condição de “reserva nacional de iodo”, esquecida de famílias bronzeadas e barulhentas ou de adolescentes ginasticados.
Estas observações acontecem-me todos os anos, mas conservam alguma inocência despreocupada e os meus benevolentes leitores conhecem-nas, detectando nelas uma regularidade mais solene do que a ida da Tia Benedita à Semana Santa de Braga. Às vezes, a meteorologia parece-me um milagre – uma espécie de acontecimento que prova que o universo está bem feito ou, então, completamente desordenado. Ambas as coisas me parecem justas e próprias de uma família de gastrónomos, botânicos, fugitivos, advogados, preguiçosos, agricultores – e gente que continua a conviver com os retratos dos antepassados.