DÓRDIO GUIMARÃES: O CULTO DA DEUSA
Desejo carnal consumado no “vórtice da sensualidade”
Dórdio Leal Guimarães (1938-1997) foi um poeta, cineasta e jornalista que consagrou a maior parte dos seus dias ao culto da musa por quem se apaixonou ainda jovem,
de quem foi fiel escudeiro e com quem viria a casar-se já no fim da vida: a poetisa Natália Correia. Nos versos de Dórdio, ela foi Cynthia, tendo-lhe dedicado quatro livros de poemas entre 1963 e 1994: ‘Cynthia’, ‘Cynthia. Livro Segundo’, ‘Cynthia em Viagem’ e ‘Cynthia e a Absoluta Viagem’ (publicado já depois da morte de Natália). Na nota que antecede o poema ‘Diamor’, incluído na ‘Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica’ (ed. Ponto Fuga), a própria Natália Correia comenta os “transes de comoção poética” de ‘Cynthia’. Deteta ali um “erotismo exaustivo”, um culto da “deusa mãe primordial”, em que “o desejo carnal, ora é convertido no êxtase espiritual da contemplação, ora (...) aspira a consumar-se no vórtice da sensualidade”.
Dórdio Guimarães trabalhou como jornalista na imprensa e na rádio, e como realizador de cinema e televisão. Uma faceta menos conhecida da sua atividade foi a colaboração com a banda Fluido, de Paulo de Carvalho (ver caixa).
Depois da morte da mulher, em 1993, dedicou-se à organização do espólio da poetisa e à tentativa de criação da Fundação Cultural Natália Correia. Quando morreu, em 1997, as cinzas de ambos foram colocadas num memorial na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Açores.
Erotismo exaustivo em transes de comoção poética
Do livro `Os Cinco Sentidos de Lisboa', ed. Galeria Panorama
”luxo de pérolas a abrir
te amacia o asfalto e pernas brancas de fêmea te apelam de salto alto se excita o útero vulcânico seu ciciar de granito vagina imensa que solta no tejo a voz do apito”
Do livro `Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica', ed. Ponto de Fuga
”Diamor
É de cravo. Toque de pétala em minha boca a tua língua redonda. Talo cálido macio de ponta subtil de tamanho. Olhos par acima ardendo incessantes de cabelos girassóis gémeos maduros no corpo do meio. Punhal de luz de permeio e no cabo da lâmina a pérola do umbigo.
Algas escorrendo ausência de Tejo nos dedos. Cabo do mundo dos meus fascínios dos meus delírios bem fundo que digo?
E o lugar dos joelhos hangares paralelos insuspeitos de viagens rotuladas.
Ó gulas que as zonas do apetite jogam os dados com pazes e êxtases estudados.
Outrora disseste ‘rei terei’ ó se minha arte tal fosse porque leal e amor sou homoalma inscrever-te no cosmos. Minha mulher. O teu sexo de ‘colher’. De sabor torrencialmente minha.
Beber-te moderno sumo do fruto. Abundante por espasmos de enormes segredos menstruados.
Sorver a plenos pulmões teu hálito mais secreto.
Esvair-me de concreto.
Ajoelho-me semeador ante a ternura do cálice por ti aberto.
Desfoca ao longe a bebida de já não vê-la de tão perto...
E o talhe de teus rins muito de Florença.
Pés de mármore de si rotativos a Sirius. Ventre que em movimento flutua. Fartura de lua.
Nádegas porcelares, carnagens lótus. Aprumo de haste bambu ao Sol e a Marte. Sexo de mim cação em teu sexo tubarão... e o teu clito perdoa que não aparece!
Ó dor! Eis-te amor. Meu amor.
Nem Vénus. Nem de Cnido nem de Milo. Muito branca muito morena e quente. Muito querida e nua viva de frente. É nesta indecisão de folhas caindo caindo decisão de altas artes plantas plantas a boca me ardendo nas tuas mamas tantas soltando-se em alces fugindo fugindo.
As horas sendo em nossos cabelos.
Uma a uma. Um a um. Do tempo a Tagus. Meus olhos égides tristezas minhas que as não desejo aos relâmpagos.
Aqui a solução é não sabermos nadar me chamas irmã dos espaços morenos. Entre ondas de carne e unhas seremos medo cisma orgasmo de podermos voar.”
Ajoelho-me semeador ante a ternura do cálice por ti aberto