Correio da Manhã Weekend

O que lá vai lá vai

- TEMPO CONTADO Rentes de Carvalho

São casos dum passado tão longínquo que quando se fala neles é precisa muita explicação, de modo que mesmo alguns que já são avós encolhem os ombros, queixando-se que não interessa, a gente de então está no cemitério, é um bocadinho cansativo ouvir recordar as alcunhas, os tiques e os parentesco­s de pessoas que já eram velhas quando alguns dos presentes ainda gatinhavam, por isso mude-se o disco, fale-se doutra coisa.

Porque assim é, e mesmo entre os de igual geração muitas vezes há discordânc­ias e aborrecime­ntos, o Fernando Matias e eu ganhámos o hábito de no último domingo de cada mês nos juntarmos a almoçar. Não incomodamo­s os outros e sem termos de nos afligir com remoques ao nosso saudosismo, podemos falar de tudo o que nos vem à memória, ao mesmo tempo que nos iludimos de que, revivendo este e aquele episódio paramos o tempo, esquecemos a nossa velhice, voltamos a ser os putos que subiam às árvores para roubar ninhos, as cerejas do vizinho ou de longe, à fisga e com boa pontaria, quebravam os cântaros que as mulheres deixavam no fontenário à espera de vez.

Todavia, numa ou noutra altura ambos nos damos conta de que a nossa ânsia de recordar o passado e fingir que assim o revivemos, mais não é do que a tentativa inconscien­te de querer abrandar o medo que nos causa a rapidez com que os anos fogem. Rapidez essa para a qual a vida não nos prepara, mantendo-nos primeiro na ilusão de que há sempre um amanhã, para de súbito, como um cortinado que escondia o inevitável e de repente se abre, nos pôr defronte do destino a que ninguém escapa.

Na última vez que nos encontrámo­s surpreende­u-me o Matias com a sugestão, de facto o pedido, de que talvez pudéssemos recordar um bocadito menos o passado, mas falar também de assuntos que no presente nos afligem, como por exemplo...

Aguardei que continuass­e, mas à maneira que as pessoas por vezes têm, de parecer que se arrependem do que iam confessar, o meu camarada baixara os olhos, tamborilav­a na mesa, pigarreou, até que por fim, num sussurro conseguiu dizer nunca ter sido pessoa de crendices, mas desde há tempos e nas ocasiões mais inesperada­s, se sentia tomado pelo pânico de que a sua morte era iminente.

Claro que todos conhecemos esse medo, mas duma maneira ou doutra a maioria das vezes conseguimo­s que não se torne uma desagradáv­el mania. Foi o que lhe recordei, mas longe estava de esperar a sua reacção:

- Pra te dizer a verdade a morte é o menos! O que já não aguento é ficar à espera, não saber quando!n

ESQUECEMOS A NOSSA VELHICE, VOLTAMOS A SER OS PUTOS QUE SUBIAM ÀS ÁRVORES

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