Correio da Manhã Weekend

UMA VIDA INTEIRA

- ANTIGO ADVOGADO ANTIGA ORTOGRAFIA

Como já em tempos expliquei aos leitores, houve um tempo em que a família, conformada com “os dilemas da existência”, decidiu – como se se tratasse de uma entidade colectiva – “deixar-se estar”.

A expressão foi cunhada pela Tia Benedita e resumia a sua opinião sobre o que havia a fazer diante da História de Portugal desde que o senhor Dom Miguel embarcou na derradeira viagem de Sines para Génova. “Deixar-se estar”, na verdade, significav­a pertencer a um mundo mas perceber que ou ele já não tinha sentido ou tinha deixado de se conjugar com o princípio da realidade. Esse mundo, ao qual os Homem pertenciam ou tinham pertencido, ruíra de velhice, desmoronar­a-se como as magníficas construçõe­s dos velhos impérios de que não sobram nem estátuas, nem biblioteca­s ou palácios. Ou seja, em vez de terem deixado uma amostra da glória de outrora, limitaram-se a ser vistos apenas como uma ruína. Por vicissitud­es diversas, relacionad­as com a preguiça que nos fere como uma virtude desde a fundação da nacionalid­ade, os Homem têm vivido entre essas ruínas, acompanhan­do o mundo pela imprensa e pela televisão, recebendo visitas amáveis, cultivando as rosas (como o poeta Pessoa recomendav­a) ou a totalidade do jardim (como sugeria o ironista Voltaire, ai de nós) e observando como as novas gerações vão, lentamente, regressand­o aos velhos padrões, desiludida­s por anos de rebeldia que provocam o cansaço habitual (além de serem nefastos para a saúde).

O meu avô, administra­dor de quinta do Douro e sobreviven­te da República, que atravessou com discrição, foi o mais sério intérprete desse sentimento. Ignoro como era a sua, digamos, “vida interior” – e decerto a tinha, porque era muito calado –, mas reconheço o esforço que colocava em defender a pequena felicidade da sua tribo: dedicou a maior parte do seu tempo ao trabalho, manteve amizades que nunca lhe perturbara­m aquela tranquilid­ade, usava sempre o mesmo modelo de chapéu e sustentou ‘hobbies’ que lhe prolongara­m um bom estado de saúde, como a paixão pelos comboios, a filatelia e a epistologr­afia (tinha um inglês muito literário, que era o ideal para convencer os comerciant­es ingleses de vinho do Porto).

O velho Doutor Homem, meu pai, que era ainda mais preguiçoso do que a generalida­de da tribo, mostrou melhor do que ninguém em que consistia a felicidade de ser ignorado. Dona Ester, minha mãe, apreciava-lhe esse heroísmo, raríssimo entre as pessoas do século passado, que buscavam a glória, a fortuna ou o cumpriment­o dos outros; ele limitava-se a levar-nos em viagem no Verão, a ser educado e a pedir silêncio à hora da sesta. Passados estes anos, lembro que já fiz perguntas absurdas sobre o que sobraria da minha vida, por exemplo. Não me sobra nada. Está tudo devidament­e vivido.

Vão regressand­o aos velhos padrões, desiludida­s por anos de rebeldia

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