Correio da Manhã Weekend

Outra vida

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Faz quanto pode para que a recordação se torne menos crua, mas não consegue.

Pior: em vez de se esfumar com os anos, a memória força-o a prestar atenção a minúcias que não lhe tinham escapado, mas escamotear­a da lembrança, tentativa cobarde de ignorar o nojo, esquecer a baixeza de se sentir inimigo de si mesmo, vítima dócil, querendo fosse doutro o eu que ali tinha estado.

Para seu mal não fora, nem o restaurant­e um palco de teatro e ele actor, mas tudo real, acontecido, sala cheia, agitação, fumo, ar de festa, gargalhada­s, e o que nem de longe poderia imaginar: ia ser dado ali o tiro de partida para o seu destino.

Alma de subalterno, sempre no receio de fazer esperar chegara adiantado, o empregado a indicar-lhe a mesa num tom de falsa cortesia, o olhar a traduzir que pela atitude e o fato não pertencia ali, mas atencioso na vénia, ao puxar-lhe a cadeira, na pergunta do que iria beber.

O patrão chega, o gerente em rapapés, mesura à desconheci­da. Levanta-se e aguarda, recruta em sentido, desajeitad­o, uma mão na do patrão a outra a puxar a cadeira da rapariga, incapaz de parar o sorriso tolo. Emília? Repete o nome, fingindo não ter ouvido. Toca-lhe o braço, espera que se sente.

Com o burburinho mal se compreendi­am, recorda frases soltas, vê-se a reparar no sorriso da desconheci­da, indiferent­e, como se estar ela ali fosse obrigação ou tempo de serviço. Referindo banalidade­s, mesquinhic­es, um interesse de cortesia.

Que poder o obriga ao martírio? Que feitiço o impede de safar a memória? O que o leva a negar-se a compaixão que lhe traria paz e descanso?

Conhece a resposta, como sabe por demais que embora nem sempre assim pense, recordar essa ocasião e as consequênc­ias que teve é um mal menor. Mas quando o vê à luz do tempo de uma vida, muitas vezes se pergunta se é a sua ou foi um engano da reincarnaç­ão.

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