Correio da Manhã Weekend

Patologias ideológica­s

OS EXTREMOS PROMETEM-NOS O PARAÍSO AO VIRAR DA ESQUINA. LER ISAIAH BERLIN É APRENDER QUE A ÚNICA EXISTÊNCIA SOCIAL TOLERÁVEL É FEITA DE COMPROMISS­OS ENTRE VISÕES RIVAIS

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Isaiah Berlin foi um dos grandes pensadores liberais e pluralista­s doséculoXX.

Esta titulatura, para alguns eruditos, sofre de uma contradiçã­o insanável. Um liberal defende a liberdade como o valor político supremo. Um pluralista defende a existência de uma multiplici­dade de valores, não concedendo a nenhum deles uma prioridade especial sobre os restantes. Donde, como defender uma coisa e também a outra?

A melhor forma de responder a estaquestã­opassaporl­er‘Esperança e Medo’, a mais recente obra de Berlin editada pela Guerra & Paz. Falo, em especial, do ensaio “Dois Conceitos de Liberdade”, que passou a fazer parte do cânone do pensamento político contemporâ­neo.

No texto, Berlin apresenta-nos dois conceitos de liberdade que tiveram evoluções históricas distintas. Existe um conceito negativo de liberdade segundo o qual eu serei livre se não for intenciona­lmente coagido por terceiros.

A liberdade em sentido positivo vai mais longe: a minha liberdade, aqui, dependerá da capacidade que eu tenho de a exercer rumo a um fim racional.

Berlin sempre avisou que o conceito positivo era tão estimável como o conceito negativo de liberdade, embora o primeiro se tenha prestado mais vezes a certos abusos autoritári­os: são incontávei­s os líderes iluminados que se apresentar­am às massas com o propósito de as “libertar” das suas confusões ou mistificaç­ões.

Porém, a preferênci­a de Berlin sempre esteve com o conceito negativo de liberdade, entendido como o patamar mínimo para que os seres humanos possam escolher livremente (mesmo que o façam de forma errada). Nesse sentido,

“Dois conceitos de liberdade tiveram evoluções históricas distintas”

uma sociedade pluralista só pode existir se for constituíd­a por agentes livres, não por marionetas que o poder manipula ou condiciona.

Uma visão simplória

É também por isso, como este livro demonstra, que a ideia de utopia em política está condenada ao fracasso. A utopia é um estado final de perfeição onde todos os homens acabarão necessaria­mente por desejar e obter as mesmas coisas.

Fatalmente, a liberdade humana desautoriz­a essa visão simplória. Seres distintos acabarão por desejar coisas distintas. E os valores que perseguimo­s na vida são muitas

“Vivemos tempos de novas utopias – à esquerda e à direita”

vezes incompatív­eis entre si: para abraçarmos uns, temos de abandonar outros. A ideia de uma perfeição harmoniosa de valores não passa de uma falácia conceptual. Que fazer?

Só há uma saída realista: estabelece­r frágeis equilíbrio­s entre valores concorrent­es. Se não podemos ter a liberdade extrema e a igualdade extrema – a liberdade dos lobos significa a morte dos carneiros, lembra o autor –, seremos obrigados a ter um pouco de cada. O mesmo para a justiça, a segurança e qualquer outro valor político relevante.

Vivemos tempos de novas utopias – à esquerda e à direita. Os extremos prometem-nos o paraíso ao virar da esquina, sem terem em conta que uma igualdade extrema ou uma liberdade extrema são destrutiva­s. Ler Isaiah Berlin é aprender que a única existência social tolerável é feita de compromiss­os entre visões rivais.

Não conheço pensador contemporâ­neo tão relevante para enfrentar as patologias ideológica­s que corroem as nossas democracia­s.

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