Os miguelistas de Moledo
Todos os anos, em Agosto, os Homem juntam-se no velho casarão de Ponte de Lima,
para mostrarem uns aos outros que continuam vivos, assinalando a sua existência precária num mundo a que pertencem por empréstimo. Ali se sentam à mesa várias décadas de vícios, memórias e reumatismos, acondicionados pelo dever, pelo hábito e, em alguns casos, pela curiosidade de visitar um museu. O museu somos todos nós e o almoço é demorado (tão longo que inclui jantar), alegre e cheio de lembranças do velho miguelismo, que é uma espécie de cimento bem-humorado. Como as nossas derrotas ocorreram há muito, não há luto nem pesar – apenas um certo alívio por ninguém se lembrar de nós. É um bom conforto.
Quando veio a democracia, parece que alguém murmurou qualquer coisa acerca de mudar o lugar do velho retrato do Senhor Dom Miguel, que há mais de 100 anos está dependurado ao fundo do corredor, de onde se vêem melhor os teixos e chorões do relvado das traseiras. O velho Doutor Homem, meu pai, que sucedera à Tia Benedita no papel de capitanear esta turba de antepassados, opôs-se: não só o Senhor Dom Miguel fazia parte da família como, além disso, nenhum improvável hóspede saberia dizer se o retrato era do príncipe proscrito ou de um antepassado austríaco.
O miguelismo dos Homem foi sempre – tal como as férias, o pudim do abade de Priscos e a literatura romântica – servido com parcimónia e a cada um segundo as suas necessidades e inclinações. A culpa desta tolerância e desprendimento é do velho Doutor Homem, meu pai; ele compreendeu que não havia vida decente sem passado e sem uma biblioteca duvidosa; tratou de educar-nos, de forma distraída, no respeito pelos mitos da família, no temor das catástrofes e no amor pelos livros. O retrato do Senhor Dom Miguel é um tempero inocente e amável que dá alegria à vida e nos lembra que não somos parte de nenhuma multidão.