Uma guerra que já era esperada
passar ao Curso de Oficiais Milicianos. Eu recusei, precisamente porque não queria ir para atirador e sabia que, se fosse para oficial, ia para atirador. Como recusei, fui para operador de informação das transmissões. A guerra não me dizia nada… nem a mim nem ao milhão que por lá passámos”, continua Agostinho.
Esteve a maior parte do tempo no Quartel General, em Luanda, e só depois do 25 de Abril, em Malanje – a mesma zona por onde passara Adelino mais de dez anos antes –, viveu a fase mais difícil da ‘sua’ guerra. “Já havia recolher obrigatório e um dia, depois do jantar, vimos um miúdo a descer para casa dele, no bairro da Catepa. Ele ia a correr e alguém perguntou: ‘Quem vem lá?’ E o miúdo respondeu: ‘É camarada.’ Vem uma rajada e o miúdo, que tinha para aí uns 16 anos, caiu redondo. Mor- reu à nossa frente e a gente ali à porta assistiu àquilo. Só que não podíamos fazer nada, a ordem que tínha
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A guerra colonial começou em Angola, em 1961, mais concretamente no distrito de Malanje, na Baixa do Cassange, motivada pelas condições de trabalho a que os agricultores estavam sujeitos. O Governo português sabia da insatisfação dos trabalhadores, até porque mos era não atuar, o quartel de Malanje estava exata- mente no meio do MPLA e da FNLA, toda a noite havia bombardeio. Era guerra e não havia nada a fazer por- que numa guerra civil não há justiça, quem tem ar- mas é quem ganha”, conta Agostinho, que assistiu à guerra entre os movimen- tos que lutavam pela liber- tação de Angola naquela fase da descolonização. Nessa altura, o jovem mili- tar que saíra de casa sem coragem para contar à mãe que ia para a guerra viu-se à frente de uma coluna de os relatórios da inspeção do trabalho eram regulares e completos, mas ignorou o barril de pólvora que viria a rebentar no dia 15 de março, com a UPA (União dos Povos de Angola) a atacar dezenas de fazendas de café no Norte do território, atacadas em simultâneo. Os ataques 1. CABO ADELINO BORGES
2. NO MATO, 3. ADELINO BORGES 4. CADERNETA
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3 mais de 100 viaturas que fugia de Malanje em direção a Luanda.
“Ouvia-se na rádio dizer que Malanje estava calma, estava pacífica, que não se passava nada, o que era mentira. O nosso passatempo, meu e de dois camaradas, era irmos todos os dias de manhã à morgue ver as pessoas que estavam lá, brancos, para vermos se conhecíamos alguém porque podiam ter morrido durante a noite. Um dia eles revoltaram-se e disseram ao comando do setor que queríamos ir embora
“Íamos todos os dias de manhã à morgue para ver se conhecíamos as pessoas que tinham morrido durante a noite” Agostinho Pinto
provocaram 800 mortos, portugueses e africanos. A revolta pela independência estava em curso e contagiou a Guiné, onde a guerra começou em 1963, e Moçambique (em 1964). Ao longo dos 13 anos que durou a guerra colonial houve 10 mil militares mortos.
A POSAR COM LOIÇA NA MÃO. “HOUVE UMA ALTURA, DEPOIS DE SER OPERADO, EM QUE FIQUEI RESPONSÁVEL POR LAVAR A LOIÇA”
NUMA OPERAÇÃO
COM 84 ANOS
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MILITAR
de Malanje. Malanje não tem mar, o aeroporto estava fechado, nas estradas não se podia passar porque havia ‘check-points’ por todo o lado. Foram pedir ao comandante do setor para fazer uma coluna para levar os civis todos para sair de Malanje, mas só aceitaram levar-nos até Salazar. A partir daí fui eu à frente”, conta Agostinho, que conseguiu sempre que os guerrilheiros os deixassem passar... depois de muita negociação e uns maços de tabaco a ajudar.
Vestir os mortos
Fernando Domingos também esteve em Angola. O primeiro cabo maqueiro fez-se enfermeiro à força da experiência: fez partos a angolanas em apuros com as crianças para nascer, distribuía injeções e medicamentos pelo batalhão sem olhar à patente e viu a morte de frente vestida nos companheiros.
“Não me esqueço de um rapaz de Peniche como eu, o João, com quem fui beber umas cervejas e que me disse assim: ‘Eh pá, ó Fernando, nunca morreu cá ninguém de Peniche a gente também não morre.’ Passados oito dias morreu, levou uma rajada num Unimog. Chegou a Quicabo já morto, fui eu que o levei a Luanda e ficou sepultado no cemitério de Sassa, fui eu que fiz o funeral.” Fernando, que chegou a Angola em 1963 e por lá esteve durante 25 meses, tratava dos feridos e dos mortos.
“Eu é que os vestia com a farda amarelo-creme que a gente tinha, um casaco dólman e a gravata, tudo... Também não esqueço um rapazinho de Torres Vedras que morreu com uma mina, ficou todo despedaçado e fui eu que o vesti. Ele
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1. AGOSTINHO PINTO
JUNTO DAS SUAS RECORDAÇÕES DE GUERRA, QUE GUARDA NO MUSEU DOS TELEFONES, EM CACIA UM HELICÓPTERO ALOUETTE III EM MALANJE (CHEFIA DO RECONHECIMENTO DAS TRANSMISSÕES), O MEU POSTO ESCRITA PELA MINHA MÃE A 25 DE ABRIL DE 1974
3. NA CHERET
4. CARTA
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2. JUNTO A
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“Nenhum camarada conseguia vestir o amigo morto” Fernando Domingos
Chamava-se, de seu nome verdadeiro Louis Ferdinand Destouches, era médico e escreveu alguns dos livros mais marcantes e influentes do século XX. Adoptou o pseudónimo literário de Céline e nunca dissimulou a sua simpatia e apoio a Hitler e ao nazismo. Também por isso recordo-me de um tempo em que falar de livros como ‘Viagem ao Fim da Noite’, de 1932, ou de ‘Morte a Crédito’, de 1936, impunha um breve preâmbulo em que se mostrava conhecer o seu triste passado político e ideológico, o que não me impedia de reconhecer que era um escritor brilhante, capaz de usar uma linguagem que influenciou Henry Miller e Charles Bukowski, entre outros.
Diga-se entretanto que havia um aspecto singular e simpático na sua história pessoal. Céline tinha um gato chamado Bébert, que o acompanhou nas suas andanças bizarras, mesmo as da fuga, já com o nazismo derrotado.
O escritor foi recrutado para o exército francês em 1912 e combateu na I Guerra Mundial. Foi daí que veio a experiência que esteve na origem de ‘Guerra’ (Livros do Brasil), agora editado e que é um verdadeiro acontecimento literário.
“Apanhei com a guerra na cabeça. Ficou-me trancada na cabeça” – assim começa este livro escrito por um homem que tinha a seu lado um companheiro morto.
Como diz o prefaciador da obra, “este livro consiste ao mesmo tempo num monólogo e num romance”.
Atingido no braço direito e na cabeça a 27 de outubro de 1914, na Bélgica, Céline, perdeu a consciência e sentiu o risco de morrer de fome e de sede.
Numa carta escrita ao irmão a 5 de novembro de 1914, conta que a bala lhe foi extraída na véspera e que não aceitou ser anestesiado. Ficou surdo de um ouvido e com fortes dores de cabeça.
Depois, com a mulher, Lucette, e Bébert, viajou por uma Alemanha em chamas e consolidou a sua triste opção ideológica.
“A edição de `A Guerra' é um verdadeiro acontecimento literário”