Correio da Manhã Weekend

O que não termina em Camões

ESTA TENTAÇÃO DE ATUALIZAR AQUILO QUE VEM DO PASSADO COMO UMA SOMBRA QUE NOS INTERPELA, MAS A QUE NÃO SABEMOS RESPONDER, É UM DOS FALHANÇOS MAIS GRAVES DO ENSINO DE HOJE Não comemoramo­s um Camões do século XXI, mas um poeta único do século XVI Um desafio:

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Um dos espectácul­os mais deprimente­s a que assisti foi a tentativa – por parte de uma esforçada professora do secundário – de “ensinar Camões” como se se tratasse de um poeta hip-hop, e um soneto cheio de queixumes acerca do amor e da natureza, da passagem do tempo e das contradiçõ­es da espécie humana (veja-se o poema maravilhos­o da página ao lado) pudesse ser traduzido em ritmo rap. O resultado não comoveu os alunos mas encheu de orgulho a professora, que se sentiu abençoada pelos espíritos da pedagogia moderna e que assinou um texto sobre “como ensinar Camões”, que eu espero que se tenha perdido entretanto.

Esta tentação de modernizar e atualizar aquilo que vem do passado como uma sombra que nos interpela, mas a que não sabemos responder, é um dos falhanços mais graves do ensino de hoje. Há, por partes, a tentação de mostrar um Shakespear­e modernista, um Camões punk, um Cervantes cujo Quixote se pretende vandalizar como um personagem ainda mais burlesco – mas não um Shakespear­e que vive as comédias e as tragédias do seu tempo, um Camões que nunca deixou de ser um poeta erudito e cultíssimo, um Cervantes que tanto foi soldado como mercenário das letras.

Ou seja, um Camões de 500 anos, que atravessa a nossa memória como um poeta de há precisamen­te 500 anos: um valdevinos, marinheiro e soldado, um homem de moral duvidosa e amores que o fizeram sofrer, rapaz da corte, pequeno fidalgo – mas não ‘um como nós’, coisa que decerto nunca poderia ser. Não comemoramo­s um Camões do século XXI, mas um poeta único do século XVI que a leitura não gastou nem pôde silenciar. “Ensinar Camões”, por isso, não é apenas apreciar a sua língua e os seus milagres, mas também situá-lo num tempo que não termina onde nós nem sequer começámos. Esse é um desafio para as comemoraçõ­es deste ano: reconhecer que temos uma história e que Camões é parte dela.

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