Tentação em tempos de crise
“Que se saiba, nunca fez mal a uma mosca…”
Anoitecer cinzento, compras feitas, sacos do supermercado no banco de trás, Júlio incorre em deslize infantil: esquece-se de fechar o carro enquanto corre à papelaria para comprar tabaco. Quando volta, minutos depois, dos sacos só o lugar. Roga pragas a si próprio. Em casa, a mulher suspira. “Lá se vai um dinheirão! Cabeça oca!” O casal, classe média desafogada, não há-de passar fome por isso, nem outras dificuldades de maior. A surpresa surge no dia seguinte. Um vizinho explica a Júlio que é testemunha do roubo. Estava por acaso à varanda, consegue identificar o assaltante. Júlio abre boca de espanto: “Quem diria!” E põe-se a cismar.
Bem empregado, atento e informado, Júlio recorda os números da criminalidade de 2023, os mais elevados em 10 anos. Sintoma de crise social: mais de 14 mil crimes violentos. Caso exemplar o de um homem de 38 anos que assaltou bancos e estações dos CTT em Lisboa e no Algarve. A polícia apanhou-o sem dificuldade. Não tem antecedentes criminais e utilizou uma pistola ‘airsoft’ de plástico. Nos supermercados abundam agora os alarmes para produtos básicos como azeite ou bacalhau. Há mesmo quem roube ovos ou conservas de atum. Júlio sabe agora quem foi o assaltante das suas compras. Um toxicodependente em carência? Um imigrante atrevido? Um ladrão crónico? Não senhor! É rapaz do bairro ao lado. Bem educado, casado, pai de dois filhos, trabalhador a recibo verde numa empresa de entregas. Está a pagar ao banco o empréstimo feito no tempo dos juros magros. Que se saiba, nunca fez mal a uma mosca. Júlio recorda a tirada irónica do humorista brasileiro Millôr Fernandes. “Não devemos resistir às tentações: elas podem não voltar.” Não tem coragem de denunciar o rapaz à polícia, nem sequer de lhe pedir contas. Esta semana cruzaram-se. O jovem, cabisbaixo, dá os bons dias à sua vítima. Júlio retribui, também ele de cabeça baixa.