A Estreia de Eça de Queiroz
O ESTILO CRU DESTE TEXTO CHOCOU OS CONTEMPORÂNEOS. TUDO – A PROSA ENXUTA, A ATENÇÃO AO PORMENOR, OS DIÁLOGOS INCISIVOS – FAZ DELE UM ACONTECIMENTO REVOLUCIONÁRIO
“A sua novela afastar-se-ia da fórmula romântica”
Quando me sinto triste, volto sempre ao Eça, especialmente a textos, que com a passagem dos dias, esquecera: foi o que me aconteceu com a novela ‘Singularidades de uma Rapariga Loira’. Provavelmente, ao partir para Cuba como diplomata, Eça levava já, na mala, este rascunho, uma vez que, como nos revelaria, a inspiração o abandonara durante a estadia nas Antilhas espanholas. É contudo possível que, em 1873, estando ainda em Cuba, tivesse já escrito um rascunho desta novela. Mal regressou a Portugal, quis publicá-la com urgência, tanto mais que o texto fora planeado para contrariar o tipo de literatura que ele havia criticado em ‘As Farpas’. Ali, não veríamos doravante Júlias pálidas, casadas com Antónios burgueses, atirando as algemas conjugais às cabeças do esposos, após o que desmaiavam nos braços de Artures desgrenhados. A sua novela afastar-se-ia da fórmula romântica.
À época, exceptuando o jornalismo avulso, Eça apenas era conhecido como o autor de uns folhetins policiais - ‘O Mistério da Estrada de Sintra’ – e de uns opúsculos satíricos - ‘As Farpas’ - trabalhos que o tinham mantido distraído enquanto ele desempenhava o lugar de administrador do concelho de Leiria. Além de ter dirigido, e redigido, durante oito meses, ‘O Distrito de Évora’, Eça apenas colaborara na ‘Gazeta de Portugal’ e no ‘Diário de Notícias’.
A avaliar pelo que dissera durante a palestra proferida nas “Conferências do Casino” (Primavera de 1871), a sua ambição era escrever romances modernos, isto é, filiados na corrente
A avaliar pelo que dissera nas “Conferências do Casino” (Primavera de 1871), a sua ambição era escrever romances modernos, isto é, filiados na corrente realista
TÍTULO `'Singularidades de uma Rapariga Loura' AUTOR Eça de Queiroz
EDITORA Guerra & Paz
realista. O conto centra-se na figura de um antigo guarda-livros da Baixa, de seu nome Macário. Numa estalagem do Minho, este relata, a um desconhecido, a sua vida. Fala do tio Francisco, uma personagem muito bem delineada. Quando Macário, um dos pobres diabos que ciclicamente aparecerão nos romances de Eça, lhe comunica o desejo de se casar com a menina loira, que, todos os dias, via da janela do seu escritório, o tio respondera-lhe negativamente. Depois de alguns percalços, Macário regressa ao armazém do tio, o qual acaba por anuir ao casamento com Luísa. Mas o conto não tem um fim feliz.
Sem final feliz
Em vésperas do casamento, fora com Luísa a uma ourivesaria comprar o anel de noivado. Sem ele ter notado – o que não aconteceria no caso do caixeiro – ela roubara um outro anel recheado a diamantes. Confrontados com o facto, saíram da loja, ele raivoso, ela cabisbaixa. Voltando-se para Luísa, diz-lhe secamente: “Vai-te.” E Macário afastou-se, devagar, riscando o chão com a bengala. Eis as últimas linhas: “Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loira.”
O estilo cru deste texto chocou os contemporâneos. Tudo – a prosa enxuta, a atenção ao pormenor, os diálogos incisivos – faz dele um acontecimento revolucionário. Do seu refúgio em Vale de Lobos, Herculano declarou que a contribuição de Eça para a Literatura era “uma tradução pior do francês péssimo”.
“Herculano disse que Eça era `uma tradução pior do francês péssimo'”