Reaccionários de outros tempos
“Passou a considerar que o tempo cura quase todos os males”
Antesdeenfrentaraquelacoisa estranhaaquedamosonome de “idade”, a minha sobrinha MariaLuísa, a eleitora esquerdista da família, entendia que os Homem ainda se regiam por uma vetusta disposição reaccionária herdada da Tia Benedita, comprometida com os terços, as novenas, o temor de Deus, a paixão tremenda pelo Senhor Dom Miguel, o horror a praticamente todas as coisas modernas posteriores à invenção da penicilina e o desprezo pelos republicanos. Quando, ao longo da minha idade madura, se evocava o espírito da matriarca e a sua sombra que pairava sobre o velho casarão de Ponte de Lima, era preciso algum sentido de humor para assistir ao espectáculo. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que havia alguma sorte pelo facto de a família contar com poucos militares na sua árvore genealógica; ele temia que, no passado, alguém pudesse ter incarnado o espírito beligerante da matriarca.
Para todos nós, que tínhamos vivido no meio século (refiro-me aos anos cinquenta de 1900), a Tia Benedita era mais uma herança do que uma presença; o Tio Alberto, o bibliófilo e gastrónomo de São Pedro de Arcos, apreciava-lhe o clericalismo ultramontano (que ele achava elegante e solene, por oposição aos ditirambos poéticos dos papas novos), o gosto pelas sobremesas e certa vaidade que só ele aproveitava quando transportava a senhora até à Semana Santa de Braga no banco traseiro do seu Alfa Romeo Villa d’Este.
Nesses anos, Maria Luísa achava que era necessário proceder ao massacre das classes médias, à nacionalização dos bancos e à censura prévia dos manuais escolares de modo a garantir que a Humanidade – ou o que entretanto sobrasse dela – não caía em tentações reaccionárias. Com o tempo, passou a considerar que o tempo cura quase todos os males e nos prepara para a aceitação. O que era uma velharia continuava a ser uma velharia. A Tia Benedita era uma filarmónica de província, inofensiva e terna.