A memória da G3
“Uma bomba ao retardador no cérebro da pessoa”
Dia soalheiro, a família prepara-se para almoçar. Filhos, netos, noras e genros cavaqueiam à volta do velho patriarca. José, jovem militar recém-regressado de uma comissão de 2 anos na Guiné, escuta a conversa com ar alheado. De repente, ao pôr a mesa, a avó deixa cair um molho de talheres. Um som brusco e metálico. José, num ápice, atira-se para o chão, soltando um berro. “Abriguem-se! Abriguem-se!” A irmã tenta acalmá-lo. “Zé! Zé! Calma! Foram só as facas a cair!” As crianças estão assarapantadas. Aconteceu no verão de 1973. Só anos mais tarde entendem que o Tio Zé veio de África sofrendo de stresse pós-traumático de guerra. Calcula-se que mais de 140 mil antigos combatentes sofram ou tenham sofrido desse distúrbio traumático. Como explicou o psiquiatra Afonso de Albuquerque, “é uma espécie de bomba ao retardador no cérebro da pessoa”, que pode “explodir” meses ou até anos depois.
José, 70 e tal anos, vai seguindo os argumentos pró e contra o regresso do serviço militar obrigatório, o que o deixa em guerra consigo mesmo. Quando chegou à Guiné, muitos dos camaradas nunca tinham visto um negro na vida e não sabiam bem onde estavam. Muitos nem ler e escrever sabiam. Contraditório, José acha bem que os mancebos de agora saibam defender-se e defender a Nação, mas sempre lutou contra a ideia de filhos ou netos seguirem a carreira militar. “Ainda por cima ganha-se uma miséria!”. Portugal tem hoje cerca de 23 mil efectivos militares, muito abaixo dos 32 mil autorizados. José intui que a guerra pode alastrar pela Europa. Há mais de 50 anos que não toca numa arma, mas nos seus sonhos e pesadelos, vê-se e revê-se a disparar uma G3. Melancólico, desabafa com amigos. “É como andar de bicicleta! Ainda posso ensinar a montar e a desmontar a nossa G3! Nunca se esquece!”