“Em 2016, o ambiente era já o da `queda de Roma'”
TAL COMO NO FIM DO IMPÉRIO ROMANO, UMA GUERRA CIVIL NOS EUA TERIA IMPACTOS EXTRAORDINÁRIOS. O ESTUDIOSO CANADIANO LEVANTA EM LIVRO A HIPÓTESE, CADA VEZ MAIS FALADA, DE A FRATURA DA SOCIEDADE CIVIL AMERICANA, ABERTA COM TRUMP, PODER CULMINAR EM ALGO AINDA
Os Estados Unidos estão a chegar ao fim. Resta saber como. Todos os governos, todos os negócios, todas as pessoas vivas, todos se- rão afetados.
O inimaginável tornou- -se o dia a dia americano. Bandos de bufões profa- nam o edifício do Capitó- lio, há gás lacrimogéneo e tanques nas ruas de Wa- shington, uma guerra in- termitente entre milícias, rebeldes armados a tentar raptar governadores em exercício, incerteza quanto à transição pacífi- ca do poder – se lêssemos isto acerca de outro país, julgaríamos que já tinha começado uma guerra civil. Os Estados Unidos es- tão a resvalar para o tipo de conflito sectário que é comum em países pobres com histórias de violência, e não na mais perene das democracias e na maior economia do mun- do. A queda foi súbita. Há uma década, a estabilida- de e a supremacia global americana eram dados adquiridos. Recordar o 11 de setembro de 2001 era pretexto para grandes demonstrações de unidade nacional. Os Estados Uni- dos eram sinónimo de triunfo da democracia. Isso acabou. A solidarie- dade desvaneceu-se. O sistema americano tor- nou-se um caso de parali- sia digno de estudo. A vio- lência política está a aumentar.”
Estes são os primeiros parágrafos de ‘A Próxima Guerra Civil’, escrito pelo
“Os Estados Unidos estão a resvalar para o tipo de conflito sectário que é comum em países pobres com histórias de violência”
canadiano Stephen Marche, articulista regular da ‘Esquire’, onde disseca as contradições do mundo moderno. O seu livro, publicado em Portugal pela Zigurate, aborda o pesadelo mais recorrente desde a primeira eleição de Donald Trump – que degenerou na enorme instabilidade interna no país fundador da Sociedade das
Nações, definidor de boa parte do rumo de todo o século XX, e membro fundador da NATO. O assunto não é sequer inédito, pois aparece frequentemente em artigos de opinião, nas notícias e nas redes sociais. Na mesma altura em que o livro de Marche foi publicado, nos EUA saiu a obra de uma reputada investigadora, bem como o ‘filme-catástrofe’ agora nas salas portuguesas (ver caixa). A entrevista com Stephen Marche foi feita por email.
Porque é que a democracia está a morrer nos EUA?
O sistema político dos Estados Unidos é aquilo a que os especialistas chamam “um sistema complexo e em cascata”. Não existe uma causa única, nem mesmo várias causas distintas, mas sim uma interação entre vários fatores, incluindo o partidarismo negativo, a degradação ambiental, o declínio da confiança nas instituições e uma Constituição antiquada e disfuncional.
A verdadeira questão não é saber porque é que a de- mocracia está a morrer nos EUA. A verdadeira questão é o que é que a mantém viva.
Porque é que decidiu escrever este livro?
Cobri a tomada de posse de Donald Trump, em 2016, para uma revista canadia- na, e o ambiente era muito parecido com o da queda de Roma [que levou ao fim da hegemonia do vasto Império Romano, em meados do século IV d.C.]. A situação parecia ser in- crivelmente precária e de- cidi ir para a América e fa- lar com toda a gente que tivesse um conhecimento fiável das condições reais da política americana para a compreender.
Entrevistou oficiais, po
“O sistema político dos EUA é aquilo a que chamam um `sistema complexo e em cascata'”
lícias, peritos em abastecimento alimentar, historiadores e cientistas políticos para fazer “mais do que suposições educadas” sobre uma potencial convulsão. Em que altura é que o cenário de uma guerra civil se tornou óbvio?
Quando se vai à América Central e se fala com pessoas da extrema-direita, a possibilidade de uma guerra civil está no topo das suas preocupações. E é claro que eles estão armados e organizados. Mas a eleição de 2016, para mim, já mostrou um país em colapso.
O livro alterna entre mo- mentos ficcionais que narram o colapso social e dados objetivos que apoiam as suas previ- sões. Porque é que escolheu esta abordagem? Inspirei-me num relatório fictício que foi feito para o Congresso dos EUA, des- crevendo como seria o re- sultado de um ataque nu- clear a Lawrence [cidade do estado do Kansas com quase 100 mil pessoas] e que acabou por ser transformado na minissérie televisiva ‘The Day After’ [programa de 1983, que a partir da mesma dimensão
“A questão não é saber porque é que está a morrer a democracia nos EUA, mas como mantê-la viva”
geográfica fala da possibi- lidade de uma guerra com as forças do Pacto de Var- sóvia]. Baseava-se intei- ramente na melhor ciên- cia disponível, mas usava a ficção para ilustrar o horror que previam. Tentei fazer o mesmo. Dizer apenas que “a política americana está a desmoronar- -se” não vale de muito. É preciso mostrar quais são as consequências. Ao mesmo tempo, os modelos que utilizei, a melhor ciência disponível sobre as realidades políticas dos Estados Unidos, não pre- cisavam de exageros para serem chocantes. Os in- vestigadores sabem, à partida, que partes de Nova Iorque serão des- truídas por um furacão. Tudo o que eu precisava de fazer era colocar essa informação de uma forma credível.
Mesmo no pior cenário, não se trata de uma guerra civil no sentido daquela ocorrida na década de
“Se alguma vez houver uma guerra civil será contra uma população fortemente armada”
1860... Qual seria o impacto das novas tecnologias e do elevadíssimo número de armas `per capita'?
A crise de informação que enfrentamos – a morte da “realidade consensual” provocada pelas redes sociais, entre outros fatores - é uma das causas da carnificina política que assola o país. Quanto às armas, há mais armas na América do que pessoas, por isso, se alguma vez houver uma guerra civil, será contra uma população fortemente armada.
O antigo Presidente dos EUA tem 77 anos. O movimento em torno de Donald Trump sobrevive para além dele próprio? Trump é apenas um sintoma. O objetivo de ‘A Próxima Guerra Civil’ é mostrar que a crise que a América enfrenta não se resume a um ou outro candidato, a um ou outro partido, a uma ou outra eleição. Os problemas que os Estados Unidos enfrentam são estruturais. O que levou à eleição de Trump não só sobreviverá à sua morte como continuará a crescer.
O que espera que possa acontecer no próximo mês de dezembro?
Espero que quem quer que seja eleito, seja claramente eleito e os americanos possam concordar sobre quem ganhou e quem perdeu a Casa Branca.
“Quando se vai à América Central, as pessoas de extrema-direita já falam em guerra civil”
“Os problemas dos EUA são estruturais. O que levou à eleição de Donald Trump não só sobreviverá à sua morte como continuará a crescer”