Desventuras canadianas
Há muitos anos, fiquei parado na fronteira do Canadá durante umas boas horas, perdendo a chance de ouvir uma conferência do Stephen King, além do carro que estava à minha espera, porque Portugal reentrara em crise, alguém andava a mandar os portugueses para fora (“Até o país voltar a precisar deles cá”) e o quase sempre simpático Canadá estremecia: “Lá vem nova vaga de fãs do Bryan Adams roubar os nossos trabalhos e as nossas mulheres.”
A minha humilhação superou o incómodo de perder a abertura do festival para o qual estava convidado. Foi maior até que a pipa de massa que gastei num táxi para chegar à conferência já só no fim. É que eu já não estava habituado. Ou por outra, estava mal-habituado. Nos anos 70, quando ia à boleia Europa fora, graças à benesse de ter pais insensatos que deixavam um filho adolescente fazer-se à estrada de polegar esticado, fui amiúde interrogado pela polícia. Uma vez, na fronteira entre a Suíça e a França, os franceses até me retiveram um bom pedaço, porque teimavam em ver-me como imigrante ilegal. Desconfiavam do meu francês: “Falas demasiado bem, onde aprendeste?” Quando lhes disse que tinha sido no liceu, riram a bom rir. Implícito estava: “Regarde-moi este, a tentar convencer-nos de que há escolas em Portugal!” Décadas mais tarde, uma guarda fronteiriça polaca riria de algo parecido, no começo da guerra na Ucrânia, quando deixavam para o fim da bicha quem parecia ter uma cor de pele mais (sei lá) tocada pelo sol: “Mas desde quando Portugal fica na Europa?”
Esse carimbo na testa que nos punham mal viam o nosso passaporte doía. Além de pré-juízo, eram um prejuízo. Uma desumanização. E, como todas as desumanizações, a coisa dói mais quando estamos do lado de quem as sofre. (Por uma razão qualquer que me escapa, o preconceito incomoda menos quando somos nós a aplicá-lo a outros.)
Povos há que só conhecem um lado da balança: o de quem tem eterna ‘cara de pobre’ ou o de quem tem eterna ‘cara de nobre’. Nós, portugueses, podemos gabar-nos de conhecer os dois lados. Isso devia tornar-nos sábios.
Ao assarem-me em fogo lento na fronteira, os canadianos fizeram-me perder a conferência inaugural do Stephen King.
Magro consolo, fizeram-me sentir dentro de um livro do Stephen King.n
“REGARDE-MOI ESTE, A TENTAR CONVENCER-NOS DE QUE HÁ ESCOLAS
EM PORTUGAL!”
ESSE CARIMBO
NA TESTA QUE NOS PUNHAM MAL
VIAM O NOSSO PASSAPORTE DOÍA