Correio da Manha

REDUÇÕES E RISSÓIS

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Há uma coisa que me mata: a mania da literatura quando um cavalheiro, ou uma dama, querem “fazer literatura” ao vivo – sente-se-lhe o corpo a retesar, numa espécie de espasmo enquanto escolhem advérbios e contracurv­as de estilo, como se avisassem: a partir de agora, ó plebeus e companhia, cuidai de ouvir-me a gramática. Há uns episódios assim, meio cómicos, durante a narrativa do D. Quixote. Se há coisa com que Cervantes embirra é com literatos: ele, que esteve na grande batalha do seu tempo, naquele dia de outubro de 1571 em Lepanto, contra grande parte do império otomano, copia-lhes os ademanes, aos literatos: põe D. Quixote a ser tolo, queima-lhe a biblioteca, pinta-o como uma criança sem juízo. É boa pessoa, claro – mas é um tolo. Ao pé dele, Sancho tresanda a sabedoria e juízo, é um filósofo que nunca escreveu um livro.

Com os chefes de sala ou criados de mesa de restaurant­es em que toda a gente tem barba ou veste jaqueta e avental pretos, passa-se a mesma coisa. Uma pessoa senta-se, quer comer, beber um vinho, aproximar a beleza da comida da capacidade de sonhar, falar em grupo – e o criado aproxima-se e parece subir a um pedestal enquanto nos informa sobre o cardápio, o menu, a ementa, a lista, as sugestões, enfim, a comida. A ementa, por um lado, já vem carregada de adjetivos e deixa-me cheio de pena; há verbos fora de lugar, advérbios mal-usados, imagens dispensáve­is, palavras fora de uso. De repente, estamos no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro a ouvir um poeta do Maranhão a declamar o hino brasileiro, cuja letra não se entende à terceira vez: não bate a bota com a perdigota. O rapaz sobe ao pedestal, então, e olha-me com sobranceri­a, fala três vezes de “redução” e duas de “baixa temperatur­a”; se tem barba, tenho medo que se incline para a mesa; se está vestido de preto, tenho a impressão de estar a esconder um vinco mal feito e uma nódoa mal disfarçada. Mas, entretanto, ele já está a explicar-me que o ‘chef’ quis “desconstru­ir” o bacalhau à Brás ou as fanecas passadas por farinha e fritas, transforma­ndo tudo isso num pastel coberto de espumas vagamente abatatadas. Tenho vontade de lhe dizer que não vale a pena; se eu quisesse recitar o Padre Manuel Bernardes tinha recitado o Padre Manuel Bernardes e não tinha vindo jantar.

Outro dia, no Porto, já sem alma nem corpo, ao fim de um dia esgotante, fui a um desses lugares a que vou há trinta anos. Sabem como é? Apetecia um vinho, mas foge o pé para uma cerveja; apetecia comer, mas uma pessoa está cansada e não quer ler o cardápio. O criado, um digno homem da Senhora da Hora, recolheu a ementa, baixou-se um pouco, teve pena e olhou-me de perto: “E se eu lhe trouxesse uns rissóis de carne ou de camarão, e o senhor pedia um arroz de grelos? E depois se via.”“E os rissóis, são de camarão?”“Como se tivessem vindo do mar.” Era isto.

APETECIA COMER, MAS UMA PESSOA ESTÁ CANSADA

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