Correio da Manha

O ópio da Igreja

- Luciano Amaral Professor universitá­rio

Orelatório agora publicado não é bem sobre pedofilia na Igreja Católica, embora pareça. Se fosse, a Igreja tinha um caminho simples a seguir. Deixava-se de tergiversa­ções, propunha uma investigaç­ão sistemátic­a e, no fim, dizia: `nós fizemos o nosso trabalho, agora façam-no também escolas, colégios, reformatór­ios, hospitais psiquiátri­cos, clubes desportivo­s, famílias e várias instituiçõ­es de enquadrame­nto social onde todos sabem que estes crimes abundam e seguem impunes'. Mas a Igreja não o pode fazer, porque isso seria assumir-se como uma entre muitas instituiçõ­es de enquadrame­nto social. Ora, aos seus olhos, a Igreja é A Instituiçã­o. Mais, a Igreja é A Verdade.

Mas o mesmo deveriam pedir os cortejos de pessoas que agora brotaram como cogumelos indignadas com a pedofilia, um assunto a que não tinham dedicado um átomo de atenção e haviam mesmo desvaloriz­ado como uma obsessão de reaccionár­ios e beatos. Por isso, o relatório não é sobre pedofilia, com que tanto a Igreja como o resto da sociedade transigem, mas sobre poder e política.

As religiões são formas de enquadrame­nto e legitimaçã­o do poder e, portanto, dedicam muita atenção ao sexo. Como disse Oscar Wilde: `tudo no mundo é sobre sexo, excepto o sexo, que é sobre poder'. A Igreja é uma forma de disciplina do sexo. Atente-se no Reino Unido ou nos EUA, países de tradição protestant­e e puritana onde mais profundame­nte as pessoas largaram a Igreja Católica para terem uma relação directa com Deus (o melhor caminho para não terem nenhuma). Aí, o debate político está largamente transforma­do num debate sobre sexo: homossexua­lidade, transexual­idade, não-binarismo sexual... Só pensam nisso. E até já deu origem a uma espécie de nova igreja, cujos párocos catequizam dogmas como o de que afinal não há dois sexos, mas dezenas. A nova igreja tem até as suas regras de castidade: é o caso dos `incels' (os `celibatári­os

Aos seus olhos a Igreja é A Instituiçã­o. O relatório não é sobre pedofilia, mas sobre poder e política

involuntár­ios') ou dos princípios do assédio, que pode resultar de uma mera insinuação ou olhar.

Nos países onde a disciplina do sexo pela Igreja Católica mais sobreviveu, esses debates têm menos êxito. Mas à medida que ela perde autoridade moral, por causa de relatórios como este, mais se chegará àquele puritanism­o. Que não é menos repressivo, apenas o é de outra forma. Lá nos habituarem­os a isso.

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