Correio da Manha

TRIPAS DE ALMOÇO

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Já em tempos, num arroubo de cosmopolit­ismo vaidoso e romântico (mas sobretudo vaidoso, é preciso reconhecer as fraquezas do espírito), vos falei da ‘trippa alla romana’, tripas à romana. Nem aqui deixo de citar o prato na língua dos mestres, mas tenho justificaç­ão: ‘trippa alla romana’ evoca o prato propriamen­te dito, o molho de tomate, aipo, poejo, cravinho, cebola, a poeira de queijo ‘pecorino’ – e, como bom pecador que sou, o pão estaladiço para acompanhar, juntamente com um vinho tinto suave e de lei, coisa que faz de qualquer um de nós um “buona forchetta”, bom garfo. E pode ser vinho branco? Pode: no estufado das tripas.

Quis o destino que me lembrassem, no coração deste inverno, as tripas à moda do Porto e, em vez do ‘pecorino’, se soltasse o odor dos cominhos; em vez do poejo, a rodela de salpicão; em vez do tomate copioso e desmoronad­o, o feijão branco com uma cozedura impoluta; em vez da cascata de legumes, a simplicida­de da cebola e do alho – e a cenourinha às rodelas que, não sei porquê, tem qualquer coisa de caseiro, doméstico e enterneced­or. E, tal como a ‘trippa alla romana’, é também um prato para sábados soalheiros e boa conversa. Com esta nota importante: sempre presentes, duas belas colheradas de arroz à beira do prato.

As tripas são comida inventada por gente pobre; devem ser cozinhadas com temperança mas nunca com demasiados temperos (já vi ‘chefs’, de jaqueta, declararem que é imprescind­ível um cálice de vinho do Porto, e não lhes caiu imediatame­nte uma abóbora no toutiço) nem abundância e exagero de carnes. Quanto às tripas, já se sabe: método das duas cozeduras, depois de bem raspadas e esfregadas com sal e limão; a primeira cozedura, para limpar gorduras e impurezas, com a água a ferver por cinco a dez minutos; depois, cozedura até estarem tenras (mas, claro, podem comprar-se congeladas). Ao lado, o salpicão já deve estar a cozer em água, juntamente com uma moira; por ordem, já lá estiveram a orelheira, em querendo, ou um chispe, querendo muito. Entretanto, no panelão principal, refogado de muita cebola e alho até ficar tudo transparen­te; tomate a gosto para dar cor e creme; um copinho de vinho branco; toucinho aos cubos; uma chuva de colorau; cenoura, água e caldo de cozer a dobrada, chouriço; juntar galinha em pedaços, a orelheira já amolecida, o chispe já desossado, e deixar ferver, cozinhar e apurar no caldo das carnes – quando começa essa fase letal, juntar a dobrada já cozida, às tiras, cominhos, cravinho e o feijão branco. Meia hora de amor, agora. Ou quarenta e cinco minutos. O feijão deve ser demolhado e cozido em casa; nada de feijão desfeito – deve conservar a sua solenidade e o grão só então se desfaz

(na boca).

AS TRIPAS

SÃO COMIDA INVENTADA POR GENTE POBRE

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