Correio da Manhã Weekend

A LOUCURA DO ELOGIO

- RENTES DE CARVALHO ESCRITOR

Umdefeito assim não deve ser daqueles que vêm do nascimento, é mais provável que tenha começado como um pequeno incómo

do da sensibilid­ade, que à força da repetição se foi transforma­ndo em fastio, e por ter crescido demais se torna uma séria antipatia.

Dá-se comigo o caso que, sejam eles a meu respeito, dirigidos a terceiros, as bacoquices de exagerada cortesia ou as habituais parangonas nos discursos de homenagem, suporto mal os elogios.

Tente agora o leitor compreende­r o meu estado de espírito nanoite emque, tendo aceitado levianamen­te o convite para jantar de um casalque vagamente conhecia, me vinasituaç­ão de verdadeiro refém de duas pessoas que fora de dúvida eram boa gente, mas também maníacos do elogio a umseu afastado parente, historiado­r falecido havia pouco, para mim um nome de exagerada fama, mas de quem eles eram mais que devotados admiradore­s.

- É mesmo pena que não o tenha conhecido, porque era um sábio! Um dos verdadeiro­s grandes homens deste país E então de uma cultura! A impressão que se tinha ao ouvi-lo falar, era que estávamos ali a beber sabedoria! Sem exagero! Exactament­e isso!

É um tique de que sofro, e pouca a esperança de que um dia encontre cura: continuam eles nesse tom e vão-se-me os olhos a fixar um ponto alto das suas testas, o que os assegura de que continuo a encará-los e me ajuda a procurar distracção no tecto.

- Um grande senhor! E então de uma gentileza!

Esta achega é da cara-metade, e eu, ao sentir que se me franzem os lábios, apresso-me a arrepanhá-los numacareta de assentimen­to. Segue-se uma pausa, ele retira os óculos com um gesto largo e, como se estivéssem­os os três num palco, dá deixa à senhora:

- De facto! Homem de imenso valor! Uma personalid­ade sem par! E a obra que nos deixou! Leu ‘A Fulgência da Desordem’, que saiu o ano passado?

Aceno que não, mas ela mal nota, esquece que vai na terceira ou quarta repetição e prossegue: - São homens desses que dão grandeza ao país!

Ele não quer ficar atrás, aponta-me o dedo sublinhand­o o superlativ­o:

- Personalid­ade fortíssima! Atocar o genial! Não param, eu cheguei ao ponto em que sinto um começo de tontura, e deixo de ouvi-los, refugio-me na imagem que guardo do falecido.

Não era sábio, nem culto, nem gentil, mas um ser traumatiza­do, doentiamen­te hesitante, sofrendo de medos irracionai­s, rara sovinice e um pendor de crueldade. Todavia, no seu caso, como tantos outros, por certo importa menos a pessoa que fomos, do que a imagem que de nós guardam os fiéis.

Homem de imenso valor! Uma personalid­ade sem par!

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