Destak

A raiva de contar os dias

- LUÍSA CASTEL-BRANCO Escritora

Acada início de ano damos conta do que foi a vida. Olhamos para trás , como quem faz uma visita a casa amiga, e percorremo­s com curiosidad­e, pena, alegria, saudade e, às vezes, lágrimas os 365 dias que ficaram para trás. Para mim os melhores momentos foram sempre aqueles que passei com os meus netos. E com uma Luísa de três meses o encanto está por aqui e não perco o sorriso nos lábios. Mas tento esquecer, e afinal talvez não o devesse fazer, os mais de seis meses contínuos em que estive doente e que tantas vezes me impediram de escrever esta crónica ou de fazer qualquer tipo de trabalho. Há uma enorme solidão nestes momentos de dor. Por um lado quem tem uma doença auto-imune sabe que não tem praticamen­te melhoras. Tem dias maus e dias horríveis e pouco mais que isso. E vem aquela vergonha. Aquela vontade direta do coração de não querer falar do assunto, preocupar aqueles que amamos ou explicar seja a quem for algo de tão íntimo. Mas, não houve e espero que nunca venha a haver, um único dia, daqueles em que nem andar posso, que me faça esquecer que há tanta, mas tanta gente que está muito pior do que eu. E é aqui que me vem à memória a conversa que tive há dias com uma grande, grande mulher. Ela sim, vive com um cancro que teima em ir comendo o seu corpo. Mas não come o seu sorriso. Nem aquele calor quando fala da filha pequena, nem a esperança, sim, a esperança que transmite, como se quisesse esquecer deliberada­mente os dias contados. Minha tão querida Laura! E todas as outras que por aíestão. Com uma força que me envergonha. Que me obriga a pensar que não sou nada, absolutame­nte nada comparada com estas grandes mulheres, homens e crianças que lutam sem fim à vista. A vida é tudo. Mas também é este buraco no estômago e esta raiva de contar os dias até perder alguém maior do que o mundo!.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal