«Gastava a mesada para ir ver filmes»
À boleia de uma nova produção cinematográfica que promete não deixar ninguém indiferente – “Ready Player One” estreia hoje – Steven Spielberg conta ao Destak como surgiu o bichinho da realização.
Steven Spielberg já fez de tudo um pouco. Retratou madona com bambino e criança com extraterrestre na festa de Halloween. Imaginou um tubarão a destruir o verão para todo o sempre. Falou connosco sobre o amor que existe na inteligência artificial, no terror que sangrou as olimpíadas de Munique, de um empresário que salvou inocentes na Europa nazi, da beleza possível na tragédia da escravaturae,deformaparticularmente épica e estrondosa, falou de códigos genéticos conservados em âmbar antes de se transformarem em dinossauros medonhos mas adoráveis.
Também já trabalhou com a Audrey Hepburn, acompanhou um camionista com ganas de perseguir motoristas incautos e concluiu várias dissertações sobre o arqueólogo Indiana Jones. Ultimamente, porém, Steven Spielberg parece estar sobretudo interessado na magia pessoal que vira o mundo do avesso, transformando o ecrã numa viagem ao poder do ser humano enquanto criatura moral. No Ponte de Espiões, no The Post e neste novo Ready Player One, acompanhamos os passos pequeninos de quem consegue encontrar soluções humanas para crises políticas e sociais. Vamos lá, então, refastelar os olhos num banquete de aventura, ficção e virtuosismo visual.
Então, é assim: no ano futurístico de 2045, no qual as memórias do passado dançam à nossa frente -- do Godzilla aos Bee Gees e passando pelo hotel sangrento de Kubrick, como se fosse possível recriar a vida em tom feérico do tipo Fellini -- o mestre da imagem em movimento voltou para nos libertar dos perigos que nos abocanham.
Leio numa entrevista algo muito bonito, dito por si. Algo como: os sonhos apanham-nos sempre de surpresa, nunca nos aparecem à frente dos olhos; um grande sonho sussurra-nos ao ouvido, não grita. Agora, pergunto: ainda se lembra quando, pela primeira vez, ficou surpreendido por um sussurro desse tipo?
Lembro-me perfeitamente desse momento. Lembro-me, distintamente, que estava em casa. Devia ter, para aí, uns 15 anos. Claro que já nessa altura era um grande fã de cinema e claro que gastava todas as mesadas disponíveis em bilhetes para ir ver filmes. Vivia em Phoenix, nessa altura. Lembro-me de me ter ocorrido uma ideia para contar uma história. Foi um murmúrio que me surgiu num timbre muito suave. Apenas o sussurro de uma ideia para um filme e não a coisa já toda completa, feita. Nunca me tinha acontecido antes.
De que maneira esse segredo, uma coisa meramente interpessoal, desencadeou o que veio mais tarde?
Bom, tudo começa com uma ideia. Lembro-me que, ao tempo, as máquinas de escrever eram enormes e que as pessoas escreviam com papel químico entre as páginas de papel. Lembro-me que esse pormenor me levou num percurso de sonho, de inconsciência. Passei toda uma noite a pensar na história, a escrever a história. Foi a primeira vez, em toda a minha vida, que passei uma noite em branco. Não consegui, naturalmente, acabar o guião por completo. Mas fui capaz de redigir e explicar todas as ideias que iriam constar da narrativa. Acho que ainda produzi umas 30 ou 40 páginas de ideias, ao longo da noite.
«Costumava trabalhar na agricultura.
Pintava troncos de árvore. Cobrava 25 cêntimos cada um» [A estreia] foi uma espécie de presságio de uma carreira cheia de filmes que duram duas horas e meia»