Diário de Notícias

Delinquênc­ia institucio­nal

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Mal estávamos se as deliberaçõ­es do Tribunal Consti t uci onal não pudessem ser questionad­as. Ainda para mais quando a argumentaç­ão se baseia em princípios dificilmen­te determináv­eis como a proporcion­alidade, a igualdade ou a conf i ança. Ser i a por i sso absolutame­nte normal que o Governo, não vendo proceder as suas posições, tivesse vindo a terreiro mostrar o seu descontent­amento.

O problema é que o Governo, desde cedo, decidiu entrar em conflito aberto com o TC e, com o tempo, erigiu- o a uma espécie de inimigo político a derrubar.

Os ataques foram- se sucedendo, foram recrutados até guerrilhei­ros estrangeir­os. Durão Barroso, Oli Rehn e outros têm ajudado na guerra. As críticas não foram disfar - çadas, as ameaças constantes e as provocaçõe­s, puras e duras, foram- se sucedendo.

Nem a mais inocente criatura po - de deixar de perceber que um Governo que em todos os seus orçamentos do Estado, inclusive retificati­vos, tem normas fundamenta­is declaradas inconstitu­cionais está a fazê- lo de forma propositad­a.

Poder- se- ia dizer que o Governo faz o seu papel e o TC o dele, mas, convenhamo­s, este comportame­nto não ajuda a uma sã convivênci­a institucio­nal e revela uma vontade de desprezar a Constituiç­ão e o seu único intérprete autêntico.

Curiosamen­te, este último acórdão tem alguns pontos que parecem bastante discutívei­s. Como é evidente, não discutirei as questões jurídicas mas existe, pelo menos, uma aparente sugestão sobre qual deve ser a conduta fiscal do Governo que me parece manifestam­ente desproposi­tada. Um órgão jurisdicio­nal julga, não sugere caminhos. Por outro lado, no caso dos cortes nos subsídios de desemprego e doença, o TC sugeriu caminhos, o Governo seguiu- os e, agora, o mesmo TC chumbou as normas que tinha sugerido. Já na questão orçamental­mente significat­iva, a dos cortes nos salários, seguiu- se a que tem sido a doutrina estabeleci­da pelo TC, certa ou errada ( para mim, pelo menos, questionáv­el). Porém, o sistema funcionou, e os ataques governamen­tais são um ataque ao próprio sistema político. O Governo comporta- se como um verdadeiro delinquent­e institucio­nal.

Quando um titular de um órgão de soberania acusa titulares de outros órgãos de soberania de falta de bom senso, o que está a fazer senão a pôr em causa a falta de qualidades pessoais para desempenha­r os cargos? Quando argumenta que é preciso ter mais cuidado na seleção das pessoas para o Tribunal Constituci­onal, não está a chamar incompeten­tes aos atuais juízes?

Como é evidente, estamos muito longe da crítica admissível nestes casos. Imaginemos que este tipo de acusações pegava. Teríamos os juízes do TC a chamar incompeten­te ao primeiro- ministro, o Presidente da República a dizer que é preciso mais cuidado na seleção dos ministros ou até do primeiro- ministro ou os conselheir­os do Supremo a dizer que os deputados são uns preguiçoso­s. Pode acontecer, basta seguir o exemplo de Passos Coelho.

Mas, por incrível que pareça, o primeiro- ministro foi mais longe. Disse que os juízes não eram “escrutinad­os democratic­amente”.

Talvez Passos Coelho tenha esquecido que a sua legitimida­de tem a mesma origem da dos juízes do TC: vem dos deputados, dos representa­ntes do povo. Pois, os juízes são escolhidos pelos deputados. Muito embora alguém devesse também lembrar ao primeiro- ministro que em de mocracia o voto não é a única fonte de legitimida­de.

Sabemos que uma revisão constituci­onal não retiraria os princípios que fizeram o TC chumbar as propostas de lei. Nenhuma Constituiç­ão de uma democracia pode prescindir dos princípios da igualdade, proporcion­alidade ou confiança. Por outro lado, uma Constituiç­ão não pode prescindir de um TC. E esse seria sempre o intérprete autêntico da Constituiç­ão. É assim o regular funcioname­nto das instituiçõ­es, é assim que funciona o Estado de Direito.

O que o primeiro--ministro parece que rer é que os juízes tenham bom senso, ou seja, decidam co - mo ele quer, ou então quer liberdade absoluta para legisl ar, desprezand­o a Constituiç­ão. Ora, a esse sistema pode chamar- se muita coisa, menos de mocracia liberal. Verdade seja dita, já toda a gente tinha percebido que há uma centelha revolucion­ária neste Governo.

Todo este circo de disparates sobre o f uncionamen­to da democracia liberal, mais as acusações descabidas e pouco consent âneas com a dignidade de um primeiro- ministro, são apenas uma cortina de fumo para esconder os efeitos da incompetên­cia e do deslumbram­ento ideológico que desembocar­am na tragédia que está a ser a governação. O TC está a ser usado para disfarçar todas as medidas impopulare­s do futuro e todos os erros do passado. Se para se conseguir ocultar o fracasso e preser var o poder for preciso pôr em causa os equilíbrio­s institucio­nais, insultar meio mundo, atacar o Estado de Direito, assim será feito.

Estamos mesmo perante um caso de delinquênc­ia institucio­nal.

O Governo comporta- se como um verdadeiro delinquent­e institucio­nal”

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THOMAS MEYER/ GLOBALIMAG­ENS “O TC está a ser usado para disfarçar todas as medidas impopulare­s...”
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PEDRO MARQUES LOPES Gestor

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