“Nunca devemos subestimar a capacidade do Partido Socialista de dar tiros nos pés”
NUNO SARAIVA Francisco Seixas da Costa é um bom garfo. E nos restaurantes que frequenta não há quem não lhe conheça o gosto pela mesa. Mantém, aliás, tertúlias diárias – a que nem sempre comparece porque a agenda não permite – porque as conversas querem- se bem apaladadas. Por isso, assim que nos sentamos na sala interior do Poleiro, em Entrecampos, o senhor Aurélio, um dos donos, trata de espevitar os sentidos do embaixador sugerindo que a entrada se faça com peixinhos da horta e bolinhos de bacalhau. O vinho tinto do Douro é escolha do “chefe”. Com a mulher partilha, além de tudo o resto, a paixão pela boa comida. A sintonia é total. A ponto de, há uns dias, uma consulta de rotina ter revelado que ambos contraíram uma gastrite crónica. “Agora tenho de me defender”, desabafa, recostado na cadeira. Não resiste, porém, ao apelo de uma alheira de caça com legumes salteados e batatas fritas.
A conversa, não podia ser de outra maneira, começa pela encruzilhada europeia, a crise grega e o modo como Portugal tem jogado o xadrez internacional. Afinal de contas, além de embaixador, Seixas da Costa foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus entre 1995 e 2001. “Diria que a vida de um país também é feita de momentos menos felizes. Esta não é, para utilizar a expressão do Churchill, a nossa finest hour, em todos os sentidos. E, no que toca à questão grega, a maneira como nós reagimos é, no mínimo, lamentável. Pela voz não só de um membro do governo, mais do que um, como do próprio Presidente da República. Para Portugal, foi um momento triste e é um momento que fica marcado negativamente na história da nossa diplomacia e na história das nossas relações externas. Querer ser mais alemão do que os alemães, querer mostrar- se segui- dista a um ponto quase caricato, não é bonito.” Qual era a alternativa? Apoiar as propostas do governo do Syriza? “Não! Tinha era de ter uma linguagem de respeito pela vontade democrática grega e compreensão sobre as razões que levaram à eleição do Syriza. E o silêncio, prudente e respeitável, poderia ter sido a resposta naquele momento. O Syriza não é mais do que o reflexo do falhanço das políticas europeias.” E acrescenta: “Acho que o grande derrotado de todo este processo é o socialismo europeu e a social- democracia europeia. Foram incapazes de criar um discurso de alternativas em que, por um lado, não se deixassem caricaturar pelas propostas radicais do Syriza mas que, por outro lado, também não se deixassem colonizar pelo modelo liberal alemão.”
Perante o impasse a que se chegou, Seixas da Costa vê na Alemanha o maior problema da Europa. Mas, paradoxalmente, é também Berlim quem tem na mão a chave para decidir se a União Europeia tem ou não futuro. “Acho que é muito difícil a Grécia continuar no euro. Não tenho uma posição sobre algumas das propostas do Syriza – embora até ache que aquelas que digam respeito aos bonds que eles propuseram no início até tinham alguma racionalidade. Mas também não me sinto, não me posso sentir, solidário com práticas fiscais e comportamentais da administração pública grega que foi laxista, feitas pelos partidos que hoje criticam, dentro da Grécia, o Syriza. Seja o PASOK, seja a Nova Democracia. E, portanto, são eles os responsáveis por tudo a que se chegou. Mas, dito isto, foi inqualificável a maneira arrogante como as instituições europeias trataram as autoridades gregas, nomeadamente o modo como as acolheram, não percebendo que o Syriza é um fenómeno derivado da falência daqueles que foram os interlocutores tradicionais dessa mesma Europa durante anos.”
Seixas da Costa não confia que, após tanto sofrimento, os gregos estejam predispostos a prosseguir um reajustamento na linha dos anteriores. E por isso acredita que Atenas acabará por ir borda fora da zona euro. “Estou muito preocupado porque não acredito nada na inocuidade de uma saída da Grécia. Porque o euro, com todas estas pressões que se prendem com os mercados e com o sentimento público, está ligado à confiança. E a confiança em relação ao projeto europeu, ao contrário do que dizem alguns patetas domésticos, vai esvair- se no dia em que a Grécia sair. Repare que desde a criação da União Europeia, nos anos 50, seria a primeira vez que alguém sairia de qualquer coisa. Isto é gravíssimo e tem um impacto terrível.”
É, porém, sobre Portugal e a avaliação do governo que Seixas da Costa se quer debruçar. Ao contrário do que tem sido dito em Lisboa e do constante vangloriar pela redução para mínimos históricos das taxas de juro, “e ainda bem”, o mérito não é do primeiro- ministro mas de Mario Draghi. “Estamos a ser free riders de um ambiente europeu positivo que nos diminui os encargos de serviço da dívida mas que não nos diminui a dívida, antes pelo contrário. O grande drama é que as reformas estruturais não foram feitas. Pelo contrário. Assistimos, ao longo destes anos, a uma disrupção da estrutura da administração pública com as consequências dramáticas que isso teve na justiça, no sistema educativo e com a rutura quase histórica do Serviço Nacional de Saúde. Há uma maioria absoluta que podia ter feito tudo o que quisesse, tendo particularmente em conta que teve um Presidente da República que lhe subscreveria tudo.” Sobressalto- me porque, em nome da honestidade intelectual, este diagnóstico vale tanto para o atual governo como para os anteriores. “É verdade, só que agora tiveram oportunidade. Estes quatro anos foram aquilo
que, de certo modo, a dra. Manuela Ferreira Leite sugeriu uma vez que era os seis meses de suspensão da democracia. Nós estivemos quatro anos sem democracia. A verdade é que a atual maioria quis que o memorando fosse o mais drástico possível para se poder escudar internacionalmente em relação às medidas que iria tomar. Portanto, quando se fala da austeridade, e da austeridade imposta pela troika, temos de saber quem eram os compagnons de route dessa austeridade. E o que é facto é que esta política falhou.” E socorre- se das queixas dos empresários sobre os custos de contexto da economia, por exemplo as rendas da energia, para desferir novo ataque à maioria: “Este governo provou uma coisa interessante: é mais fácil cumprir as promessas que fez aos chineses do que aos portugueses.”
Entusiasmado com a conversa, quase que se esquece dos talheres pousados sobre o prato. Numa semana em que o PS se empertigou por causa das eleições presidenciais, Seixas da Costa, que integra o grupo que aconselha António Costa na elaboração do Programa Eleitoral, não deixa de registar a má gestão socialista deste dossiê. “Nunca devemos subestimar a capacidade do Partido Socialista de dar tiros nos pés.” Reconhece que “o desaparecimento do candidato natural” e a indisponibilidade de figuras como Jaime Gama ou António Vitorino cria uma situação difícil ao partido. Pergunto se está desiludido com António Guterres. A resposta é esclarecedora: “Não gostava que me tivesse feito essa pergunta.” Sobre Sampaio da Nóvoa diz que “é uma pessoa intelectualmente qualificada, um homem seriíssimo, um tipo com grande sentido de Estado. E estou convicto de que, uma vez eleito Presidente da República, faria um excelente lugar. O problema é ser eleito”. Não gostou de ouvir o ex- reitor da Universidade de Lisboa adotar Eanes como modelo porque “o PRD é uma lição que não esqueço”. E acrescenta que o pior que podia acontecer era o PS apoiar Sampaio da Nóvoa, não por convicção, mas por não existir alternativa. Até porque, considera Seixas da Costa, elas existem e têm nome: Maria de Belém, Guilherme d’Oliveira Martins ou Vera Jardim, só para dar alguns exemplos.
Quase três horas após o início do almoço e quatro cafés depois, falamos das legislativas. Seixas da Costa diz que “será muito difícil” que das próximas eleições saia uma maioria absoluta. E por isso Cavaco Silva não deixará de ser chamado a desempenhar um derradeiro papel antes de abandonar Belém. “Só espero que aceite os resultados eleitorais e que não se presuma, digamos, ungido de um poder de fazer a sua leitura na fórmula antiga, a chamada ‘ maioria estável e coerente’. O professor Cavaco Silva, lamento dizê- lo, perdeu legitimidade em função da sua ausência em grandes momentos nos últimos anos, para querer, no final do mandato, fazer uma espécie de recuperação da sua imagem. Eu não queria citar os clássicos, mas devemos ajudá- lo a terminar o mandato com dignidade, porque não é bom para a democracia portuguesa ver um Presidente da República sair pela porta das traseiras.” E com quem deve o PS entender- se para governar? “O Partido Socialista não pode, não poderá nunca, confrontar o país com surpresas. O PS, à sua esquerda, não pode fazer nenhum tipo de compromisso – e não vai fazer, tenho a certeza absoluta – que ponha em causa alguns dos elementos estruturantes daquilo que é a sua matriz, como a questão europeia ou a nossa permanência na NATO, ou o nosso compromisso com um certo modelo económico- social.” Sobram, portanto, o PSD ou o CDS. “Mas depende muito do que for a afirmação política nestas eleições. Poderá acontecer que nesta balcanização do espetro político possam aparecer forças, figuras ou personalidades que possam ajudar o Partido Socialista a compor um modelo de governo com coerência. O PS não pode deixar nunca de ser fiel àquilo que for a mensagem que passar para o eleitorado. E, portanto, não pode confrontar nunca o eleitorado com surpresas pós- eleições. Nem surpresas nem mentiras.”
A conversa é interrompida pelo toque de telemóvel de Seixas da Costa. É do Largo do Rato para confirmar que o embaixador não falta à reunião do Gabinete de Estudos do PS. Solta uma gargalhada e confessa, “nunca tinha sido chamado de camarada”. Só se fez militante do partido em 2001, após a derrota eleitoral protagonizada por Ferro Rodrigues. “Achei que era um dever para um partido que, durante cinco anos e meio, me deu a oportunidade cívica de ser membro do governo como independente.” Finda essa “comissão de serviço”, regressou à carreira diplomática. E hoje, fazendo um pouco de autocrítica, ressalvando que os embaixadores não são “eunucos políticos”, diz que se voltasse atrás talvez não se tivesse filiado. “Não por qualquer renegação ideológica mas talvez porque não seja necessário.”
É na altura da conta que passamos ao último tópico da conversa. O nome de José Sócrates ainda não tinha sido proferido uma única vez. Seixas da Costa confessa- se surpreendido pela prisão do ex- primeiro- ministro. Sente- se obrigado a “acreditar na inocência do engenheiro José Sócrates. Se não for verdade tudo aquilo que se indicia, estamos perante uma cabala miserável. A ser verdade, e se isso se viesse a confirmar, então estamos perante um crime indesculpável”.
Encaminhamo- nos para a saída. Manuel, dono da cozinha do Poleiro, sócio e irmão de Aurélio, está à espera para se despedir. Seixas da Costa detém- se por uns minutos na garrafeira a tentar descobrir vinhos novos. E promete regressar. Afinal é cliente desde a “fundação”, em 1985. Ou melhor, é amigo. Porque ao fim de 30 anos, clientes são os outros.
O POLEIRO 2 pães 1 azeitonas Bolinhos de bacalhau Peixinhos da horta Água 1 Roquete e Cazes Tinto 1 pataniscas de camarão c/ arroz de lingueirão 1 alheira c/ barriguinha e legumes Salteados 4 cafés 1 Famous Grouse 1 Jameson
TOTAL: 98,35 EUROS