É o referendo grego democrático?
As negociações entre a UE e o governo grego dificilmente poderiam ficar mais dramáticas. O relógio está em contagem decrescente e, se não for encontrada nenhuma solução nesta semana, um país da Europa do Sul, membro da zona euro, entrará em bancarrota – com consequências imprevisíveis para os cidadãos gregos, mas também para o resto da Europa. Terça- feira à meia- noite expirou um primeiro prazo e a Grécia não pagou o reembolso ao FMI. É evidente que as coisas não estão bem.
Até agora, este “drama grego” desenrolou- se envolvendo instituições e os seus representantes: a Comissão Europeia, o FMI, o BCE, o governo grego, Alexis Tsipras, Angela Merkel, François Hollande, Jean- Claude Juncker, Christine Lagarde, Mario Draghi, assim como uma série de ministros das Finanças e outros peritos. O elenco era complexo, mas cabia numa lista que não ultrapassava algumas páginas. Com a surpreendente decisão do governo grego de submeter a oferta final dos credores – a Comissão Europeia, o BCE e o FMI – a um referendo nacional, a própria lógica da peça mudou. Parece que agora cabe a uma maioria de cidadãos gregos decidir sobre o destino do seu país, presumivelmente numa votação binária de sim ou não, sobre uma pergunta que ainda tem de ser formulada e uma oferta que pode já ter expirado no momento em que a votação tiver lugar. À primeira vista parece ser um processo digno para o país onde, afinal, foi inventada a democracia. Contudo, uma análise mais cuidadosa revela uma imagem bastante menos gloriosa. A verdade é que há quatro problemas fundamentais que podem ter origem no “veredicto popular” proposto.
Em primeiro lugar, a Grécia moderna não tem qualquer experiência de referendos. A última vez que os eleitores gregos foram chamados a manifestar- se em votações que não eleições foi há mais de 40 anos, em 1974, quando o país fez a transição para a democracia e quando uma maioria popular decidiu que preferia uma República e não uma Monarquia para a sua futura forma de governo. Desde então, e contrariamente à maior parte dos outros países da Europa, a democracia direta a nível nacional manteve- se inexistente. Foi apenas com a crise económica e a confrontação com os credores sobre o resgate em 2011 que o então primeiro- ministro George Papandreou tirou do chapéu a ameaça do referendo. No seu ponto de vista, os credores seriam simplesmente obrigados a respeitar a vontade do povo grego. As coisas não foram tão longe – Papandreou teve de demitir- se antes de o referendo se realizar. Hoje, essa mesma ameaça de referendo é mais uma vez feita por Alexis Tsipras, mais concretamente contudo, com uma data marcada para amanhã, 5 de julho. Em menos de uma semana espera- se que um povo que não faz uma escolha de sim ou não há mais de 40 anos “decida” sobre o futuro do seu país. Em nenhum outro processo moderno de democracia direta é dado tão pouco tempo aos cidadãos para reunirem e processarem a necessária informação sobre a proposta em jogo, para a debaterem e assim ser possível emergir uma opinião pública informada, muito menos para tomarem uma decisão de tão longo alcance. E essas são condições necessárias, embora não suficientes, para que um processo de referendo seja verdadeiramente democrático. Hoje mesmo, isto foi afirmado em Estrasburgo pelo secretário- geral do Conselho da Europa.
Segundo, os cidadãos gregos são chamados a votar a favor ou contra uma oferta de um conjunto de atores externos para manter o país solvente e dar um impulso financeiro à sua economia através de futuros investimentos. O que está em jogo não é, portanto, sequer um acordo entre o governo grego e, digamos, outro governo ou uma organização internacional, mas simplesmente um plano decidido fora e independentemente da Grécia. Isso é muito diferente de referendos sobre tratados internacionais, como os que existem na Suíça, na Irlanda ou na Dinamarca, nos quais os governos respetivos defendem os acordos negociados e fazem campanha a favor destes. Contudo, nos próximos dias os atores principais que defendem o sim no referendo grego serão ou credores estrangeiros ou, talvez, a oposição grega. Isto, por sua vez, vai resultar numa campanha de “eles” contra “nós”, que irá dar os trunfos aos argumentos nacionalistas em lugar de a uma discussão séria dos prós e dos contras da oferta proposta – o que dificilmente serão os ingredientes para uma decisão madura e democrática nas cabinas de voto.
Em terceiro lugar, o referendo irá misturar a democracia direta com a democracia representativa. Imaginemos que sai um sim das urnas. Num tal cenário o governo de Alexis Tsipras terá possivelmente de se demitir e terão de ser convocadas novas eleições. E se os votantes gregos disserem não? Neste caso, não só o país irá muito provavelmente para a bancarrota, como isso levará à saída da Grécia do euro. As consequências para o povo grego seriam devastadoras e o destino de um governo que tivesse conduzido a campanha ativamente para este resultado poderia ficar rapidamente selado. Por outras palavras: seja qual for a escolha dos eleitores, ela será tanto uma escolha sobre política como sobre o próprio governo. E o processo poderá muito bem acabar com um golo na própria baliza, semelhante ao “suicídio por referendo” cometido por Pinochet no Chile e por De Gaulle em França. Para os eleitores, no entanto, isto não torna as coisas mais fáceis, pois eles estarão a votar tanto no plano para salvar a Grécia da insolvência como no governo de Alexis Tsipras.
Em quarto lugar, e este é possivelmente o aspeto pior de todo o drama, convocar este referendo é uma tentativa desesperada de passar a responsabilidade governamental para o povo como um todo. Eis um governo que é incapaz de alcançar um acordo com os credores para salvar o seu país do caos. Em vez de ficar na história como um fracasso político, este governo passa agora o fardo para os cidadãos na esperança de que estes adiram ao tema do “nós” e do “eles” juntamente com os seus representantes. Embora a ameaça de um referendo possa ser uma ferramenta poderosa durante as negociações, uma vez as cartas na mesa não serve outro propósito que não o de deixar que um governo se esconda atrás de uma alegada vontade popular, forjada em pouquíssimo tempo e num clima quente de acusações nacionalistas. Não ser capaz de alcançar um acordo nas negociações pode ser visto como um fracasso, no entanto, culpar o seu próprio povo pelo resultado, porque foi a sua “escolha” nas urnas, pode ser visto como simples cobardia.
A única conclusão que se pode tirar destas observações é que amanhã os votantes gregos não devem ser chamados às urnas. Por respeito democrático pelos seus cidadãos o governo de Atenas deve cancelar este referendo sórdido – quanto mais cedo, melhor.
A última vez que os eleitores gregos foram chamados a manifestar- se em votações que não eleições foi há 40 anos, em 1974