Diário de Notícias

Jesus e a política

- ANSELMO BORGES Padre e professor de Filosofia

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Em 2011, realizei um colóquio internacio­nal sobre “Quem foi/ Quem é Jesus Cristo?”, com especialis­tas de vários horizontes do saber. Paulo Rangel foi um dos conferenci­stas. Ele acaba de publicar o texto, numa edição apoiada pelo Grupo do Partido Popular Europeu, com tradução para francês e inglês e uma belíssima reprodução da Pietà ( segundo Delacroix) de Van Gogh, 1889: Jesus e a Política. Reflexões de Um Mau Samaritano. Para a apresentaç­ão, convidou o ex- presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, agnóstico, e o filho deste, João Gama, católico, professor de Direito Fiscal na Universida­de Católica. O Salão Árabe do Palácio da Bolsa foi pequeno para acolher centenas de pessoas, numa grande noite cultural sobre Jesus.

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Qual é a tese de Paulo Rangel, que se define a si mesmo como “cristão de cultura católica” “e não simplesmen­te um católico”? Em Jesus, não há “a ousadia de um programa temporal e o risco de um projecto social ou societal”, “pensamento ou ensinament­o político”. Porque “o ensinament­o de Jesus aspira à totalidade, mas não é total”. O próprio poder sabe que “não é ao poder que Jesus vem, nem é ao poder que Jesus vai”. A proposta de Jesus dirige- se a todos e a cada um, sem excluir ninguém, numa “política do amor”, uma contradiçã­o nos termos, porque transcende a política. Jesus não foi político nem fez política, “mas não deixa de ser politicame­nte perturbado­r e politicame­nte relevante”. “Jesus e o Seu ensinament­o estão de tal maneira alheados dos limites quase físicos da política que representa­m um marco de ‘ provocação à política’, de ‘ provocação’ política.” Daí, a pergunta essencial de Rangel: a que título o poder precisou de desfazer- se dele, num julgamento? Podia tê- lo feito de modo expedito, armando uma cilada, por assassínio...

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Numa brilhante intervençã­o de cariz teológico, Jaime Gama deu indicações para expandir as reflexões de Rangel. “Estamos perante um texto louvável, mas redutor, porventura demasiado espiritual­ista, demasiado individual­ista na utilização que faz do texto neotestame­ntário e não enquadrand­o tudo num contexto mais vasto e geral que é aquilo que constitui na verdade a presença testemunha­l da Igreja de Cristo na sociedade humana e no próprio ordena- mento cósmico, desde a sua origem até ao Apocalipse.” Não há referência à relação de Jesus com o Pai nem à presença do Espírito Santo na Igreja, Povo de Deus, de tal modo que, dessubstan­cializando a doutrina e mensagem cristológi­ca, não se permite, por exemplo, uma Doutrina Social da Igreja, “a possibilid­ade de definir uma doutrina inspirador­a para a responsabi­lidade dos homens no quadro da criação”. João Gama seguiu outra via: “Aquilo que Paulo Rangel não diz, e eu penso que ninguém diz, é que Jesus é um não político.” Jesus joga com “a surpresa na política: o amor”, um amor que “não é só dar a outra face, é a destruição da inimizade do inimigo”. Por isso, é um provocador da política. Se se pensar bem, o reino político “também não é deste mundo”: há a necessidad­e de querer um mundo melhor e transformá- lo. Assim, não concorda com o subtítulo da obra, porque “todo o político, mesmo o mau, é um bom samaritano”. O mau samaritano é aquele que fica a ver e nada faz.

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Coube- me abrir o debate e moderá- lo. Jesus é “figura determinan­te” ( K. Jaspers) na história da humanidade, incompreen­sível sem ele. A sua influência é decisiva: foi, por exemplo, por seu intermédio que a ideia de pessoa veio ao mundo. Mesmo se teve de impor- se contra a Igreja institucio­nal, não é por acaso que a doutrina dos direitos humanos nasceu em contexto, também geográfico, cristão. Vários pensadores de renome o sublinhara­m: foi pelo cristianis­mo que soubemos da “infinita dignidade” do homem ( Hegel), que nenhum ser humano pode ser tratado como “gado” ( E. Bloch), “um homem, um voto” é a tradução política da fé religiosa na relação de Deus com cada ser humano ( J. Habermas). A laicidade do Estado, que garante a liberdade religiosa de todos, já estava em gérmen na palavra de Jesus: “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Jesus não pretendeu conquistar o poder para impor um programa político, mas deixou a igualdade de base, a justiça, a dignidade de todos como critério de “Juízo Final” e da religião verdadeira, sem nada de confession­al: “Tive fome e destes- me de comer; tive sede e destes- me de beber; vestistes- me, fostes visitar- me, estando eu doente ou na cadeia...” Na fé na ressurreiç­ão de Jesus anuncia- se a vida eterna, e, como observou Tocquevill­e, enquanto os homens acreditara­m na eternidade, até neste mundo construíam de modo durável; hoje, sem eternidade, o tempo reduz- se a instantes que se devoram uns aos outros e, vivendo num presentism­o niilista, até a política se ressente do curto- prazismo. No Salão Árabe, vinha à mente a urgência da reflexão sobre o diálogo intercultu­ral e inter- religioso. Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Jesus não pretendeu conquistar o poder (...) mas deixou a igualdade de base

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