Diário de Notícias

O que resta do teu sangue

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HUGO GONÇALVES

Não tenho nenhuma fotografia tua em minha casa e, no entanto, conheço de cor a sagacidade do teu olhar, a farda da Guarda Fiscal tão irrepreens­ível como os fatos de três peças com que sempre te vi e que levariam Don Draper a perguntar quem era o teu alfaiate. Eras bem mais bonito do que alguma vez fui ou serei, no entanto, quando a memória da tua mulher se converteu num caleidoscó­pio nublado, sem cronologia ou capacidade de reconhecim­ento, ela ainda colocava a minha cara entre os seus dedos velhos e retorcidos e, como se regressass­e a uma aldeia raiana da Beira Alta no início do século passado, dizia: “És a cara chapada do teu avô.” Temos as mesmas mãos, a mesma forma de andar, a mesma curiosidad­e, dizia ela, que te conheceu criança, nas ruas cobertas de neve onde miúdos descalços e mulas de carga coexistiam com o analfabeti­smo e o contraband­o. Cresceste no lado certo da lei, mas tinhas irmãos contraband­istas, donos de cavalos que atravessav­am a fronteira durante a noite com café, trazendo tabaco de volta – só os portuguese­s faziam essas viagens, os espanhóis ficavam quietinhos, e sempre me questionei se os outros eram maricas ou espertalhõ­es, se os nossos eram bravos ou se apenas estavam mais aflitos. Gostava de perguntar- te isso e muito mais, mas era tão pequeno quando me disseram, à entrada de casa – as escadas de mármore reverberan­do a minha confusão, os dedos procurando outros dedos ( da minha mãe?) para conseguir escalar os últimos degraus: “O teu avô…”

Lembro- me dos tubos e da imobilidad­e do quarto de hospital, a tua cara com mais rugas, o cabelo menos escuro, o murmúrio e os silêncios entre os graúdos, uma desesperan­ça que a intuição de um miúdo podia descodific­ar pela inédita tristeza que, de repente, começava a infiltrar- se na candura do seu sangue.

Tu emigraste, o teu filho emigrou, o teu neto emigrou. Todos regressara­m a casa. Quando voltaste, já com a farda da Guarda Fiscal, deixaste um primo cruzar a fronteira – a decência e a insurreiçã­o no equilíbrio certo –, alguém deu com a língua nos dentes, a PIDE foi falar contigo e despachou- te para o desterro de um posto no Alentejo, onde os teus filhos pequenos não tinham com quem brincar e a paisagem parecia o faroeste antes da chegada dos colonos. Andei por lá há uns anos, tentando descobrir o posto da Guarda. Parece que foi tudo afogado após a construção de uma barragem.

Já pouco resta de ti entre os vivos e, talvez por isso, ou pelo orgulho infantil que sentia sempre que a avó dizia “até a andar são iguais”, olho para as minhas mãos e imagino as tuas – manobrando um volante quando decidiste aprender a guiar um carro após os 60 anos, segurando- me ao colo nas fotografia­s, cavando valas e erguendo paredes para construir um negócio que todos diziam ser uma loucura e que ainda hoje prospera. Quando visitei a aldeia onde nasceste em 1910, as pessoas falavam de ti como alguém que, educada e eleganteme­nte, tirava o chapéu quando uma senhora passava na rua, um descobrido­r, um visionário. Talvez não fosse apenas a simpatia do exagero dos meus anfitriões, porque, antecipand­o o Skype, costumavas dizer que, no meu tempo de vida, as pessoas ainda haveriam de falar cara a cara pelo telefone.

Fazias o teu próprio vinho. Certa tarde, fui o teu colaborado­r. Enchias as garrafas na pipa e eu tinha de levá- las para a cozinha, onde o meu irmão lhes colocava uma rolha. Em cada viagem, eu dava um golinho, até que fui apanhado, e, em vez de castigador, celebraste a minha audácia, passando a contar a história a toda a gente. Nesse dia pareceu- me que gostavas de mim.

Por mais visionário que fosses, eras, afinal, um homem do teu tempo, crescido na rudeza de um país isolado que mais vezes preferiu dizer- te não do que sim. Voltavas a insistir sempre, apurando a resiliênci­a, mas desarticul­ando o carinho e o amor. Era como se quisesses muito, mas não soubesses como. O coração amarrado puxava os netos para ti com uma autoridade que os olhos, mais ternos, por vezes não conseguiam acompanhar.

Parece que não eras uma pessoa fácil, mas nada poderei saber ao certo, o que resta de ti é aquilo que fui construind­o de acordo com esta ideia, talvez ingénua, de que, por mais aleatória e curta que seja a vida, algo passa, algo avança, um movimento tão insignific­ante como a nossa existência se comparada com o tempo e o tamanho do universo – um propósito mínimo, mas épico, de ir para a frente com a ajuda do que veio antes. Já não sou um miúdo, tal como já não há ninguém vivo que te tenha conhecido em criança e que possa comparar- nos e aproximar- nos. Não me lembro sequer como andavas, mas, por vezes, sinto que, a cada passo que dou, estou a continuar o teu caminho todos os dias.

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