Diário de Notícias

Uma cidade francesa à beira de um ataque de nervos

Calais. O ambiente é pesado. A população não fica indiferent­e às centenas de pessoas que chegam desesperad­as: uns ajudam, outros têm medo

- EMANUEL NUNES, Calais

De França ninguém quer nada e, muito provavelme­nte, alguns nem da Europa continenta­l querem alguma coisa. A sua passagem por terras gaulesas é apenas uma escala na sua longa viagem até ao Reino Unido. Esperançad­os de que lá poderão encontrar melhores condições de vida. Conhecida pelo seu porto, Calais é a cidade francesa onde termina a viagem de milhares de refugiados e imigrantes ilegais rumo à UE. A maioria veio de África, depois de arriscar a vida a atravessar o Mediterrân­eo.

Kamal é um exemplo disso. É um jovem sírio que deixou o seu país há três meses. Para trás ficaram os pais e quatro irmãos. E milhares de quilómetro­s percorrido­s. “Fui até à Turquia, depois Grécia, daí fui para a Macedónia – atravessei a pé toda a Macedónia – depois fui para a Sérvia, a Hungria e outros países europeus”, explicou o jovem ao DN. Todo este esforço só tem um objetivo: conseguir chegar ao Reino Reino. E para isso já fez de tudo. “Já tentei ir num ca- mião, num comboio e de muitas outras formas, mas é perigoso.”

Ao DN este refugiado assegura que em França não quer ficar “porque não há sitio”. E conta: “Temos de ir para a ‘ selva’ que é um local onde não se faz nada, a não ser ficar debaixo de uma árvore. Não há comida nem água. Se quisermos comer temos de ir a uma certa hora e só há uma pequena refeição. Ali somos tratados como animais.”

E aquilo a que Kamal chama selva está mesmo ali, à entrada do porto e à vista de todos, na estrada de acesso ao terminal. É como atravessar uma prisão. Para lá das duplas grades de segurança, com cerca de dez metros de altura e cobertas de arame farpado, lá estão as dezenas de barracas de tamanhos variados. Formam uma espécie de ilha no meio do mato. Não há estradas para lá chegar, apenas uns caminhos de terra batida, criados naturalmen­te pelas centenas de pessoas que todos os dias os calcorreia­m.

Por isso Kamal e o seu grupo resolveram abandonar a “selva” e mudar- se para uma praça central onde, com cartazes em inglês, reivindica­m diariament­e o que consideram ser o seu direito de entrada no Reino Unido. O problema é que a polícia não permite este tipo de manifestaç­ões . No local, o DN testemunho­u a chegada repentina de dezenas de polícias de intervençã­o para os expulsar da praça. Vieram com coletes de proteção e bastões e rapidament­e rodearam o grupo de refugiados sírios.

Denoeux Monique também lá estava na altura. Ela faz parte da associação humanitári­a local Calais, Ouverture et Humanité ( Calais, Abertura e Humanidade). Segundo disse ao DN esta francesa, a polícia até foi simpática. “Desta vez, eles vieram com uma tradutora. Foi a primeira vez, porque normalment­e recorrem à força, com gás lacrimogén­eo e matracas.” Denoeux acrescenta ainda que Calais tem atualmente cerca de três mil refugiados que “vivem na rua, que procuram asilo mas cujos processos se desenrolam muito lentamente”.

A entrada do Eurotúnel, na vila vizinha de Coquelles, é outro ponto de concentraç­ão de refugiados. Aqui as pontes por cima das estradas têm, de lado, redes altas com arame farpado para evitar que haja quem se atreva a saltar para a capota de um camião em andamento.

E assim que o Sol se começa a pôr, há grupos de homens, nor- malmente às meias dúzias, que se aproximam das estradas e autoestrad­as. O DN testemunho­u o momento em que um grupo saltou dois rails de proteção de uma autoestrad­a e atravessou a via para o outro lado, com o objetivo de ficar mais próximo das faixas de rodagem no sentido do Eurotúnel. À noite, Coquelles é uma espécie de vila sitiada com polícia em todas as rotundas para dissuadir quem planeie aproveitar a noite para invadir camiões com destino ao Reino Unido.

Mas também há os que se aventuram pelo centro de Calais. Uns aproveitam casas abandonada­s e tornam- nas suas. Outros deitamse nos jardins a descansar de mais uma noite de tentativas para chegar a Inglaterra.

Já a zona junto às praias é onde se juntam mais refugiados sírios. À porta de uma igreja moderna, que se encontra encerrada, o DN encontrou um grupo de 20 homens. É ali que vivem, ao cimo da escadaria. Num dos cantos montaram uma espécie de cozinha. Há até um móvel com um pequeno fogão e nas prateleira­s vê- se um pacote de arroz.

Arranjaram colchões e roupa de cama e os vizinhos ajudam como podem. Garantem que não têm problemas com os moradores daquela que é uma zona residencia­l. Afirmam que não querem entrevista­s nem fotografia­s mas num inglês quase perfeito sublinham o mesmo do que todos os outros: querem ir para o Reino Unido.

O ambiente que se vive em Calais é, porém, pesado. A pacatez da cidade parece não ter conseguido sobreviver à “invasão” de centenas de pessoas que, desesperad­as, todos os dias ali vão chegando. A população não fica indiferent­e: muitos ajudam, muitos também têm medo. Réau Christiane vive em Calais há vários anos depois de ter passado grande parte da vida em Paris. Ao DN, esta francesa confessa que Calais “já não

é uma cidade tranquila. Vivi 50 anos em Paris e tinha menos medo”.

Sentado noutro banco de jardim, mesmo em frente ao Grande Teatro Gérard Philipe, está Innouni Hasni, para quem Calais está a atingir o seu limite: “Não diria que há demasiados imigrantes mas há demasiado movimento e nós não estamos habituados. Dos que vieram, há uns que são educados e gentis, mas também há outros mais agressivos e os habitantes de Calais têm medo.”

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1. Mulher da Eritreia observa o filho que anda de bicicleta num dos acampament­os ilegais em Calais, aos quais chamam a “selva” 2. Imigrantes ilegais aproveitar­am greve da semana passada em Calais para tentar entrar nos camiões parados na estrada e...

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