O criador de Kurt Wallander também conta histórias de Moçambique
O mais famoso autor de policiais nórdicos criou um protagonista que o tornou famoso em todo o mundo. Em setembro de 2014 escreveu duas crónicas e revelou o cancro que lhe fora diagnosticado. Seguiu- se uma descida ao inferno até perceber como a vida se a
O sueco Henning Mankell acaba de lançar O Anjo Impuro: um romance com Lourenço Marques como cenário.
Aterra do escritor Henning Mankell não esqueceu que os famosos policiais do autor sueco tornaram Ystad conhecida em todo o mundo após ser traduzido em 45 línguas e ter vendido mais de 40 milhões de exemplares. Daí que tivesse criado um roteiro que explora a rua Mariagatan, na qual o personagem “viveu” muitos anos, e vários outros lugares onde a ação dos policiais protagonizados por Kurt Wallander decorre.
A princípio, Henning Mankell não apreciou a homenagem mas agora já não se importa quando vê as excursões de fãs: “É como visitar Baker Street, porque era ali a casa de Sherlock Holmes, ou o café A Brasileira, por causa da estátua de Fernando Pessoa.” Tal como não o surpreende que vá ser estreada no próximo ano uma ópera com o libreto inspirado no inspetor Wallander: “Como personagem, uma das suas características é ser um grande melómano e com uma ligação profunda à ópera.”
Há muitas outras situações a que o escritor deixou de conceder tanta importância no último ano e meio, enquanto outras foram mais valorizadas. Percebe- se essa reavaliação na escolha das quatro epígrafes para o seu último livro, O Anjo Impuro, em que está uma atribuída ao cantor Bob Marley: “Algumas pessoas sentem a chuva, outras apenas se molham.” Uma citação a que Man- kell não quer acrescentar grandes explicações: “Penso que Bob Marley tem razão... Não irei dizer nada de inteligente sobre isto... Só gosto muito do que ele diz.” Outra frase é de Carl Sagan: “Não sei para onde vou, mas sei que estou a caminho.”
Sobre esta não se pede explicação, mesmo que ela venha quando se questiona o escritor sobre a doença que o assustou no ano passado ao ser diagnosticada, com pensamentos em cascata. Deseja falar sobre o cancro que lhe fez ver a verdadeira importância da vida e em voz que quer pausada diz: “O embate inicial já foi ultrapassado, mas é sempre muito complicado no primeiro mês, quando tive de perceber que a minha vida iria ser completamente diferente. Também não sabia na altura se sobreviveria muito ou pouco tempo, nem o que me iria acontecer. Ao reagir bem ao tratamento, senti que a vida ia con- tinuar.”
Ainda se pergunta o porquê de ter revelado a doença em duas crónicas: “Falar sobre cancro hoje não é falar de morte mas de vida, por isso sentia- me obrigado a dizê- lo aos leitores. Afinal, continuo a escrever.”
Mankell finaliza o assunto e passa ele próprio a fazer as próximas perguntas. Como é que traduziram o título Minnet av en Smutsig Ängel para português? Como está o tempo em Portugal? Um Anjo Impuro e nada de frio como em Ystad são as respostas de uma conversa toda feita em português, pois Mankell tem vivido nas últimas três décadas metade de cada ano num país de língua portuguesa, Moçambique, onde é diretor artístico do Teatro Avenida.
Curiosamente, o mais recente romance de Mankell em Portugal contém uma história que reúne essas duas nacionalidades, ao refazer a história de uma jovem sueca que em 1904 desembarca em Lourenço Marques ( atual Maputo). Hanna viajava para a Austrália mas sente um impulso irresistível para descer à terra, onde decide ficar a viver, tendo casado com um português. O romance inventa o que terá sido essa vida, tendo em conta a única certeza: o registo oficial da sua presença. Os leitores dos seus policiais não irão estranhar usar Moçambique como cenário de um romance? Muitos leitores poderão achar estranho, por outro lado muitos deles sabem que vivi quase 30 anos lá e que existe uma ligação muito profunda com este país e o seu continente. Além de que chegou a hora de começar a escrever sobre África na minha perspetiva. Que é um pouco diferente da do eu ser europeu e que é um desafio que aceitei para poder contar a história verdadeira de uma mulher que esteve em Lourenço Marques e da qual nada sabemos. Quando avança neste livro fá- lo a pensar em África ou nos leitores espalhados pelo mundo? O único leitor que tenho sou eu próprio. O único livro que posso escrever é o livro que quero ler. Se fizer bem o meu trabalho, então haverá leitores em todo o mundo. É o caso deste livro, que já está traduzido em França, Inglaterra e Estados Unidos. Considera- se um leitor exigente? Para mim é importante que a história conte algo que desconhecia. Quero ter alguma revelação ou uma coisa nova sobre eu próprio. O livro deve dar informações importantes ao escritor. É só o que posso dizer. Coloca Hanna como respeitadora dos africanos, mas de tanto ver maus- tratos, ela dá uma forte estalada numa empregada. Foi uma página fácil de escrever? Muito difícil! Para todos os escritores há páginas que são muito difíceis, mesmo que sejam necessárias. Se não as escrevermos, a verdade do que fazemos fica por dizer. Para quem nasce num país nórdico não é difícil imaginar África do modo real como a descreve? Se é... Mas era o mínimo que deveria fazer após 30 anos de viagens até lá. De uma coisa estou certo, este era um romance impossível há 20 anos, porque só agora tive a capacidade. Esta vivência em África mudou- lhe a perspetiva sobre o mundo? Só posso dizer que sim e sob todos os ângulos, até na forma de escrever. A experiência de Moçambique é muito importante
porque mudou a minha vida. Não se sente numa vida paralela? Confesso que antes era uma vida bastante paralela porque, por exemplo, no que respeita às comunicações era tudo muito difícil em Moçambique. Se quisesse enviar um fax, mesmo com muita ajuda, demorava um dia. Hoje é tudo mais fácil, o mundo ficou mais pequeno. Quando lá chegou em vez do colonialismo português confrontou- se com a guerra civil. O que ficou na memória da população? Eu chego a Moçambique com o fim da Guerra Colonial, em 1975. O que se vivia era aquilo que Mandela dizia: o colonialismo é uma realidade política e económica mas também demora muito tempo a desaparecer das mentalidades. Nesta altura, a maior parte da população não tem memória do colonialismo porque nasceu depois da independência e o que se observa é uma mudança a 100% da sociedade. Começa a escrever aos 21 anos. Isso condicionou a sua vida? Acho que sim, nunca pensei fazer outra coisa. Foi uma decisão profundamente importante, tomada quando tinha 15 anos, altura em que também decidi que tinha de conhecer o mundo e compreen- dê- lo melhor. No entanto, o que decidiu a minha vida foi o preço dos bilhetes de avião. Em 1973, os mais baratos eram para a Guiné- Bissau e por essa razão foi o primeiro país de África que visitei. Era um bilhete muuuuuito barato com partida de Lisboa. E logo senti as contradições do mundo, pois ao desembarcar no aeroporto da Guiné ouvi, vindo dos altifalantes, a expressão “Bem- Vindo a Portugal”. Era uma primeira entrada em África e confrontava- me imediatamente com a história do colonialismo. Nunca quis ser outra coisa além de escritor? Também fui diretor do Teatro Avenida mas, entre os muitos privilégios da minha vida, penso que sentar- me a escrever é o melhor. Gosto de ficar sozinho. Até ao aparecimento de Stieg Larsson, era o único nome de respeito no policial nórdico. Foi benéfico o aparecimento dele para os novos autores escandinavos? Stieg Larsson é um exemplo estranho. Primeiro, por ter morrido muito cedo. Segundo, por agora quererem continuar a publicar os seus livros. É um erro e ele nunca aceitaria isto. Penso que as histórias que Stieg Larsson escreveu eram muito boas mas, tal como se diz do Byron, faz parte de um tempo próprio. Qual o seu papel no policial? É um facto que podemos dizer que comecei esta escola de romance noir da Escandinávia, mas existe atualmente uma pessoa que é muito boa neste género: Jo Nesbo. É um escritor com boas histórias para contar. Nem todos os escritores seriam capazes de “matar” um protagonista tão famoso como fez ao inspetor Wallander. O que se passou? Não sei se é uma questão de coragem acabar com Kurt Wallander... Foi mais ter respeito pelo leitor e também pelo escritor, porque não queria escrever mais histórias em que o leitor sentisse que o autor está cansado. Decidi que iria acabar com tudo enquanto ainda existia inspiração, energia e poder. Estou certo de que os leitores agradecem quando se sente respeito por eles. Queria outros temas? Francamente, devo dizê- lo, não era muito complicado acabar com o Wallander porque havia tanta coisa que queria escrever. Há muita coisa para eu fazer, tal como este romance Um Anjo Impuro. Ou o anterior, o Tea Bag, que é uma história nada policial? As histórias que pretendo relatar sobre o nosso mundo devem refletir que vivemos um tempo muito complicado. O escritor Mia Couto, com quem falo muitas vezes sobre a condição da nossa vida, diz que tem de ser outra coisa. Diferente. É, aliás, um livro em cima do acontecimento porque refere os problemas de imigrantes como são agora os do Mediterrâneo. Desde muito cedo que vi que iria ser uma catástrofe terrível, tanto que estamos a viver uma Europa onde Lampedusa é o centro do nosso continente. Que Europa queremos é um assunto que devemos pensar bem. Existia sempre uma mensagem nos policiais. Estes romances também a querem passar Sim e as reações assim o confirmam. Por norma, os leitores também leem as entrelinhas dos romances que escrevo. Quando isso não acontece, sou obrigado a pensar que está alguma coisa errada com o livro, pois uma coisa é o que o escritor diz, outra o que ele quer dizer nesse subtexto. Que necessita ser compreensível. Esteve nos barcos que foram romper o bloqueio de Israel a Gaza e acabou deportado. Sente- se com o dever de ter um posicionamento enquanto escritor? Na minha opinião, o escritor é um intelectual com responsabilidades. Ir a Gaza era a forma de ninguém no mundo ignorar o que se passava. Também foi ao Fórum de Davos... É importante ouvir o que as pessoas têm a dizer. Vai continua a ir a Moçambique todos os anos? O único problema que me impede as viagens é se coincidirem com os tratamentos. É difícil estar num avião devido à diferença de pressão. Certo é que em setembro irei estar em Maputo e não deixarei de estar em contacto com o Teatro