Diário de Notícias

Margarida Sousa Uva escreve sobre a memória que fica de Maria Barroso

- MARGARIDA SOUSA UVA Vice- presidente Associação Portuguesa de Crianças Desapareci­das

Énão apenas difícil mas talvez absurdo até escrever- lhe agora que já não está entre nós. A verdade é que, tendo podido, não fui ao seu funeral. Não foi o cancro, que já é do domínio público, o cansaço ou os quilos a mais, o cabelo mais embranquec­ido e curto que me travaram. Mas sou muito avessa a enchentes desta natureza e, embora nada tenha seguido nem pela televisão ( também não a ligo muitas vezes), estou certa de que havia uma multidão a acompanhá- la. Também não sou próxima da sua família, apesar de conhecer o seu marido, melhor, os seus filhos, menos bem. Não me pareceu ser lá o meu lugar. Não tive vontade de a chorar diante de outros. E a verdade é que só ontem, dias depois da sua partida, se abateu com toda a força sobre mim a verdade dura de que não mais a verei, nem ao seu sorriso, não mais ouvirei a sua voz nem as palavras amáveis que sempre me reservava ao ver- me “Gosto muito de si”, enquanto a suas mãos, calorosas, apertavam as minhas com força. Acabou. Foi lendo um jornal do passado fim de semana que me dei realmente conta desse facto irreversív­el. Acabou. Não mais a verei, nem à sua frágil silhueta dos últimos anos. Julguei- a eterna, imortal, uma rocha firme, uma árvore estranhame­nte alta tendo em conta a sua pequena estatura física, árvore de raízes fundas, que, vagamente sentia, havia de nos sobreviver a todos.

Primeiro contou- me o meu marido que, numa ocasião recente em que estiveram lado a lado, tinha sido ele a segurá- la, a impedi- la de cair. A seguir ao “obrigada” ( por ter impedido a queda), seguiu- se o “Sabe que gosto muito da sua mulher”. Depois chegou a notícia do coma irreversív­el. Eu estava então em Bruxelas atarefada com mil coisas, médicos, fisioterap­eutas, papelada que restava de uma mudança a que não conseguia vislumbrar o fim. Chegada de longe, a notícia parecia um boato. Não seria assim, ela resistiria, pensava um tanto distraidam­ente enquanto corria de uma lado para o outro com a ajuda de um familiar. Veio- me à cabeça o “São loucas! São loucas!”, grito de Amália. E agora mesmo, sentada neste fim de tarde numa bonita varanda diante de dois gigantes, uma araucária e um cipreste, que se dividem entre o mar e o céu que têm por fundo, vejo claramente quão grande é a sombra que projeta ainda a diminuta figura que os anos lhe conferiram e como nos fará falta a todos. Aqui, preciso de lhe fazer uma confissão. Vezes houve em que julguei existir uma pontinha de vaidade a motivar algumas aparições públicas suas que fui presencian­do de há tempos para cá. Julguei- a mal. Não queria ficar sentada em casa, como uma inútil, a ver televisão. Tinha toda a razão. Velhos são os trapos. Nós, quando a lucidez não nos deserta, somos sempre os mesmos, no princípio e no fim. O corpo velho contém ainda todos os desejos, todos os entusiasmo­s da juventude. Só o sonho se esbate por sabermos que o tempo que nos resta é menor e, assim mesmo, há quem continue a sonhar até ao fim.

Dou- me mais uma vez conta de que tendo, durante muito tempo, invejado terrivelme­nte a posição do homem, ser masculino, na sociedade em que vivo, sinto hoje um particular orgulho pelo facto de ter nascido mulher. Foram mulheres que ao longo de milénios e de incontávei­s gerações cuidaram dos outros, cuidaram dos seus, cuidaram da família, dos amigos e dos doentes e dos mais velhos, sem disso fazerem alarido, como a minha amiga soube fazê- lo. E se me consola ver que lentamente ( quão lentamente e a que preço!) nos aproximamo­s de uma igualdade de direitos efetiva relativame­nte ao homem ( o respeito, esse pequenino pormenor, por aquilo que é uma mulher, esse ainda tem léguas para andar...), se me apraz ver um cada vez maior número de mulheres a desempenha­r funções com impacto no nosso viver comum e no dia- a- dia de todos, sofro com e preocupa- me o abandono em que vivem tantas crianças e tantos adolescent­es. E pergunto- me: como podem as sociedades ser tão estúpidas a ponto de não perceberem que crianças e adolescent­es entregues a si mesmos, ou a quem não os ama, não poderão senão crescer ervas daninhas ou plantas tortas e doentes, que a comparação com um jardim se aplica? O que impede a compreensã­o por parte de quem decide ( governos, empresas) que crianças e adolescent­es não são “eles” mas sim “nós”? Que os mais velhos, a quem devemos respeito e uma vida digna por tudo o que entretanto fizeram, não são apenas os “eles” de hoje, serão ( não é claro?) os “nós” de amanhã? Não, não estou, afinal, a dizer que as mulheres têm de ficar em casa a tratar dos filhos que os casais decidem ter e mais tarde também dos pais que vão envelhecen­do. A função de cuidador pode ser desempenha­da tanto pela mulher como pelo homem, é uma questão de cultura, uma questão de hábito, uma questão de legislar em conformida­de com esse princípio. Mas quero agradecer a todas as mulheres que amaram o suficiente para se conformar, quando isso se tornou necessário, com aquela que é ainda vista como uma função menor e tão subvaloriz­ada. A si, muito em particular, o meu obrigado por, tão só e tão sofridamen­te, ter cumprido esse dever que todos temos de ajudar o ser humano no começo da sua vida a crescer “direito”, a crescer saudável, a descobrir os seus talentos, a compreende­r o sentido e a importânci­a do amor. E recordo o que um dia, num avião rumo a África em que todos viajávamos, um amigo que vos é próximo me confidenci­ou: “Se soubesse o que esta senhora sofreu, o marido exilado em Paris, ela sozinha em Lisboa com os filhos, o colégio, as compras na praça às cinco da manhã para gastar menos...” Via- se que sabia do que falava e não mais esqueci esse curto relato.

Vejo- a ainda, e também com nitidez, no tempo em que me foi dado conviver consigo em funções oficiais, particular­mente fora de Portugal. Lembro- me de me ter impression­ado a sua energia e a frescura com que, de manhã à noite, sabia reservar um sorriso amável a quem vinha ao seu encontro. Nessas ocasiões, e em conversas que fomos tendo, mais de uma vez a vi indignar- se e perguntar: “Mas porque hão de dizer que atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher? Porquê atrás? Porque não ao lado?” Mas... o povo lá sabe o que diz. Eu era nova na altura. Hoje terlhe- ia respondido assim: ao lado é só para a fotografia. Na realidade é mesmo atrás, atrás das cortinas, fora do palco, que o amor atua e o mais importante se passa. O amor que, como dizia São Paulo na sua carta ao Coríntios ( 13), “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Por mais de uma vez a vi chorar, na igreja do Campo Grande, enquanto se dirigia à comunhão. Custou- me vê- la assim. E se é mais fácil compreende­r o sentido do amor, já é um desafio bem maior procurar compreende­r o sentido do sofrimento e aceitá- lo.

Nesta ilha portuguesa onde descanso uns dias, oiço o mar e as gaivotas, vejo as nuvens deslizarem no céu empurradas pelo vento e penso em si como estando aqui presente enquanto escrevo, entre o jardim, as aves e o céu. Também gosto muito de si. É tarde para lho dizer. Não sei se o seu coração me consegue ainda ouvir. Gosto de pensar que sim.

Julguei- a eterna, imortal, uma rocha firme, uma árvore estranhame­nte alta tendo em conta a sua pequena estatura física, árvore de raízes fundas, que, vagamente sentia, havia de nos sobreviver a todos

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