Como ser espião em português, francês e inglês
Quase 400 pessoas estiveram, no sábado, a responder à primeira prova para ingresso nos serviços secretos portugueses. Candidatos à espionagem assinaram uma declaração, aceitando que a sua vida seja fiscalizada
Foram 383 os candidatos às dez vagas para serviços de informações que prestaram provas no sábado. Responderam a 70 perguntas, algumas em francês ou inglês.
A fila que, no passado sábado, abraçou as instalações do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas ( ISCSP), no Alto da Ajuda, em Lisboa, não era composta por estudantes que deixaram para a última hora a entrega de um qualquer papel na secretaria. Eram, sim, os 383 candidatos à espionagem nacional que aguardavam pacientemente a entrada no ISCSP para a realização de uma espécie de Prova Geral de Acesso ( PGA) para o acesso à espionagem. Os aspirantes a espiões foram confrontados com perguntas como: “Que carne não comem os muçulmanos?”, “Onde fica Damasco?” ou “O que é um URL?”
Foi assim, neste regime de quase total abertura, que decorreu a primeira prova que dará a um secreto Júri do Procedimento Concursal uma primeira impressão sobre as pessoas que querem ingressar no Sistema de Informações da República Portuguesa ( SIRP), as quais poderão ser encaminhadas para o Serviço Informações e Segurança ( SIS) ou o Serviço de Informações Estratégicas e Defesa ( SIED). Fontes contactadas pelo DN asseguraram, porém, que o mais provável é que a maioria dos candidatos aceites ingressem no SIS. Porém, só existirão dez vagas para os 383. Certo é que, após a correção da prova, um grupo de eleitos – potenciais futuros espiões – terá a sua vida escrutinada ao pormenor, já que todos, antes da realização do teste assinaram uma declaração, aceitando que os dados pessoais nela contida fossem verificados ( espiados?) pelos serviços. 120 minutos para 70 perguntas Antes de iniciarem a Prova Escrita de Conhecimentos, a qual, perante o número de candidatos, decorreu em várias salas e no auditório do ISCSP, os candidatos foram convidados a despojar- se de tudo o que era material eletrónico: telemóveis, tablets ou computadores pessoais. “Sobre a mesa de trabalho devem estar apenas o caderno de questões e a folha de respostas”, advertia uma informação distribuída no início do teste.
Quando abriram o enunciado, depararam- se com um teste de 70 perguntas, das quais 56 foram apresentadas em português, enquanto 14 estavam redigidas ou em francês ou inglês. De acordo com os critérios de avaliação, uma resposta correta às questões formuladas em estrangeiro é mais bem pontuada ( 0,43) do que em português ( 0,25). O teste estava ordenado por sete temas: Organização Política e Administrativa do Estado; Economia; História, Política e Religião; Sociologia, Geografia; União Europeia e Cooperação Internacional e TIC e Sociedade de Informação.
Para cada questão foram dadas quatro hipóteses de resposta. “Deve responder à opção que seja mais correta e/ ou completa, entre todas as opções possíveis”, salientava a informação. Em cima da realização da prova, os candidatos foram verbalmente informados de que estavam a ser recrutados para o Sistema de Informações da República, não fosse algum dos candidatos que responderam ao anúncio – que não mencionava a entidade – pensar que estaria ali a prestar uma prova de conhecimentos gerais para uma qualquer multinacional ou uma repartição do Estado ( pública). Ainda para dar mais informação , os serviços criaram um e- mail junto da Direção- Geral da Qualificação dos Trabalhadores Públicos ( bep. hel- pdesk@ ina. pt) para “esclarecimentos adicionais”. Os aprovados no exame poderão, em setembro, ser chamados para prestação de provas físicas e entrevistas pessoais com dirigentes de topo das secretas, assim como com psicólogos de forma a aferir se detêm ou não o perfil adequado para vestir o fato de espião ao serviço da República. Nomes revelados Este concurso foi tudo menos secreto. Em junho, o DN adiantou que os serviços de informações enviaram um e- mail a 383 candidatos a espiões pedindo- lhes que confirmassem o interesse na vaga. Mas na lista de destinatários estavam os endereços de todos os concorrentes.
A identificação dos candidatos a espiões foi divulgada, alegadamente por lapso, pelos Serviços de Informações da República Portuguesa ( SIRP) durante um processo de recrutamento que está a decorrer para as secretas.
O ex- presidente do Conselho de Fiscalização do SIRP, Jorge Bacelar Gouveia, disse, na altura, ao DN que só havia uma solução: “Anular este concurso e começar do zero.” O constitucionalista Bacelar Gouveia salientou ainda que “o sigilo foi comprometido, não só da identidade dos candidatos, como do próprio processo de recrutamento, e por isso o melhor é começar de novo”.
O secretário- geral do SIRP, Júlio Pereira, não respondeu às questões do DN para justificar aquele procedimento, nem sobre que medidas iriam ser tomadas. O atual presidente dos fiscais das secretas, o deputado social- democrata Paulo Mota Pinto, também se remeteu ao silêncio sobre este caso, a fazer lembrar o episódio Veiga Simão – quando, em 2009, ficou disponível na intranet da Presidência do Conselho de Ministros uma lista de 23 nomes de quadros do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, com as respetivas fotografias. O que levou à demissão do então ministro da Defesa. Novo quadro legal Os novos espiões do Estado já poderão atuar num novo quadro legal, que lhes poderá permitir ter acesso ( dentro da lei) à faturação detalhada dos telemóveis. Algo que, ainda com a atual lei, lhes está vedado. Porém, a proposta da maioria PSD- CDS, apoiada pelo PS, suscita várias dúvidas de constitucionalidade, uma vez que a Constituição apenas permite a ingerência das autoridades públicas nas comunicações num “processo criminal” e não para a recolha de informações.
Os três partidos procuraram contornar o problema, prevendo a criação de uma comissão de juízes do Supremo Tribunal de Justiça, a qual ficará com poderes para autorizar ou não o acesso aos dados. Resta é saber como se pronunciará o Tribunal Constitucional caso, por exemplo, Cavaco Silva peça a fiscalização do diploma já aprovado na Assembleia da República. A Comissão Nacional de Proteção de Dados, o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Superior da Magistratura afirmaram que estes novos poderes são inconstitucionais.