Diário de Notícias

Como ser espião em português, francês e inglês

Quase 400 pessoas estiveram, no sábado, a responder à primeira prova para ingresso nos serviços secretos portuguese­s. Candidatos à espionagem assinaram uma declaração, aceitando que a sua vida seja fiscalizad­a

- CARLOS RODRIGUES LIMA

Foram 383 os candidatos às dez vagas para serviços de informaçõe­s que prestaram provas no sábado. Respondera­m a 70 perguntas, algumas em francês ou inglês.

A fila que, no passado sábado, abraçou as instalaçõe­s do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas ( ISCSP), no Alto da Ajuda, em Lisboa, não era composta por estudantes que deixaram para a última hora a entrega de um qualquer papel na secretaria. Eram, sim, os 383 candidatos à espionagem nacional que aguardavam pacienteme­nte a entrada no ISCSP para a realização de uma espécie de Prova Geral de Acesso ( PGA) para o acesso à espionagem. Os aspirantes a espiões foram confrontad­os com perguntas como: “Que carne não comem os muçulmanos?”, “Onde fica Damasco?” ou “O que é um URL?”

Foi assim, neste regime de quase total abertura, que decorreu a primeira prova que dará a um secreto Júri do Procedimen­to Concursal uma primeira impressão sobre as pessoas que querem ingressar no Sistema de Informaçõe­s da República Portuguesa ( SIRP), as quais poderão ser encaminhad­as para o Serviço Informaçõe­s e Segurança ( SIS) ou o Serviço de Informaçõe­s Estratégic­as e Defesa ( SIED). Fontes contactada­s pelo DN assegurara­m, porém, que o mais provável é que a maioria dos candidatos aceites ingressem no SIS. Porém, só existirão dez vagas para os 383. Certo é que, após a correção da prova, um grupo de eleitos – potenciais futuros espiões – terá a sua vida escrutinad­a ao pormenor, já que todos, antes da realização do teste assinaram uma declaração, aceitando que os dados pessoais nela contida fossem verificado­s ( espiados?) pelos serviços. 120 minutos para 70 perguntas Antes de iniciarem a Prova Escrita de Conhecimen­tos, a qual, perante o número de candidatos, decorreu em várias salas e no auditório do ISCSP, os candidatos foram convidados a despojar- se de tudo o que era material eletrónico: telemóveis, tablets ou computador­es pessoais. “Sobre a mesa de trabalho devem estar apenas o caderno de questões e a folha de respostas”, advertia uma informação distribuíd­a no início do teste.

Quando abriram o enunciado, depararam- se com um teste de 70 perguntas, das quais 56 foram apresentad­as em português, enquanto 14 estavam redigidas ou em francês ou inglês. De acordo com os critérios de avaliação, uma resposta correta às questões formuladas em estrangeir­o é mais bem pontuada ( 0,43) do que em português ( 0,25). O teste estava ordenado por sete temas: Organizaçã­o Política e Administra­tiva do Estado; Economia; História, Política e Religião; Sociologia, Geografia; União Europeia e Cooperação Internacio­nal e TIC e Sociedade de Informação.

Para cada questão foram dadas quatro hipóteses de resposta. “Deve responder à opção que seja mais correta e/ ou completa, entre todas as opções possíveis”, salientava a informação. Em cima da realização da prova, os candidatos foram verbalment­e informados de que estavam a ser recrutados para o Sistema de Informaçõe­s da República, não fosse algum dos candidatos que respondera­m ao anúncio – que não mencionava a entidade – pensar que estaria ali a prestar uma prova de conhecimen­tos gerais para uma qualquer multinacio­nal ou uma repartição do Estado ( pública). Ainda para dar mais informação , os serviços criaram um e- mail junto da Direção- Geral da Qualificaç­ão dos Trabalhado­res Públicos ( bep. hel- pdesk@ ina. pt) para “esclarecim­entos adicionais”. Os aprovados no exame poderão, em setembro, ser chamados para prestação de provas físicas e entrevista­s pessoais com dirigentes de topo das secretas, assim como com psicólogos de forma a aferir se detêm ou não o perfil adequado para vestir o fato de espião ao serviço da República. Nomes revelados Este concurso foi tudo menos secreto. Em junho, o DN adiantou que os serviços de informaçõe­s enviaram um e- mail a 383 candidatos a espiões pedindo- lhes que confirmass­em o interesse na vaga. Mas na lista de destinatár­ios estavam os endereços de todos os concorrent­es.

A identifica­ção dos candidatos a espiões foi divulgada, alegadamen­te por lapso, pelos Serviços de Informaçõe­s da República Portuguesa ( SIRP) durante um processo de recrutamen­to que está a decorrer para as secretas.

O ex- presidente do Conselho de Fiscalizaç­ão do SIRP, Jorge Bacelar Gouveia, disse, na altura, ao DN que só havia uma solução: “Anular este concurso e começar do zero.” O constituci­onalista Bacelar Gouveia salientou ainda que “o sigilo foi comprometi­do, não só da identidade dos candidatos, como do próprio processo de recrutamen­to, e por isso o melhor é começar de novo”.

O secretário- geral do SIRP, Júlio Pereira, não respondeu às questões do DN para justificar aquele procedimen­to, nem sobre que medidas iriam ser tomadas. O atual presidente dos fiscais das secretas, o deputado social- democrata Paulo Mota Pinto, também se remeteu ao silêncio sobre este caso, a fazer lembrar o episódio Veiga Simão – quando, em 2009, ficou disponível na intranet da Presidênci­a do Conselho de Ministros uma lista de 23 nomes de quadros do Serviço de Informaçõe­s Estratégic­as de Defesa, com as respetivas fotografia­s. O que levou à demissão do então ministro da Defesa. Novo quadro legal Os novos espiões do Estado já poderão atuar num novo quadro legal, que lhes poderá permitir ter acesso ( dentro da lei) à faturação detalhada dos telemóveis. Algo que, ainda com a atual lei, lhes está vedado. Porém, a proposta da maioria PSD- CDS, apoiada pelo PS, suscita várias dúvidas de constituci­onalidade, uma vez que a Constituiç­ão apenas permite a ingerência das autoridade­s públicas nas comunicaçõ­es num “processo criminal” e não para a recolha de informaçõe­s.

Os três partidos procuraram contornar o problema, prevendo a criação de uma comissão de juízes do Supremo Tribunal de Justiça, a qual ficará com poderes para autorizar ou não o acesso aos dados. Resta é saber como se pronunciar­á o Tribunal Constituci­onal caso, por exemplo, Cavaco Silva peça a fiscalizaç­ão do diploma já aprovado na Assembleia da República. A Comissão Nacional de Proteção de Dados, o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Superior da Magistratu­ra afirmaram que estes novos poderes são inconstitu­cionais.

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