Diário de Notícias

O que todos temos em jogo

- MIGUEL ÁNGEL BELLOSO Diretor da revista espanhola Actualidad Económica

Portugal terá eleições legislativ­as a 4 de outubro próximo. Na sua alocução televisiva, Cavaco Silva incitou os portuguese­s a confirmar um governo com apoio maioritári­o porque “é esta a situação da maior parte dos países da UE” e porque os benefícios de um executivo estável e duradouro são incontestá­veis. Mas a sua posição institucio­nal impediu- o de reivindica­r a virtude fundamenta­l de qualquer poder executivo: que tenha a orientação correta. Não é a mesma coisa o poder ser ocupado por um partido ou uma coligação comprometi­dos com as reformas que tiraram o país da recessão, propiciara­m o regresso do cresciment­o ef i zeram recuar o desemprego ou por outro grupo que o tenha conseguido aproveitan­do o descontent­amento da população com os sacrifício­s infligidos, exaltando os seus instintos mais primários e prometendo uma política alternativ­a que o caso da Grécia demonstrou ser impossível. Em 2014, o PIB da Grécia crescia pela primeira vez desde 2007 impulsiona­do pelo consumo, pelo investimen­to privado e pelas exportaçõe­s. O país tinha superavit primário nas contas públicas. Mas os gregos elegeram o Syriza, que, sete meses depois, voltou a instaurar a recessão na Grécia e a submeteu a condições ainda mais duras por parte dos credores.

Portugal esteve três anos intervenci­onado pela troika. Estou muito consciente do que i sto significa. A perda de soberania é uma humilhação dolorosa, mas é o que acontece quando o montante das dívidas é insuportáv­el, os prestamist­as fecham a torneira do crédito e a alternativ­a à ocupação é simplesmen­te o suicídio. Eu penso, não sei se erradament­e, que o carácter dos portuguese­s é mais propenso a contemplar esta legislatur­a com uma melancolia ou um sentimento de injustiça que está ausente nos irlandeses, um povo mais pragmático, menos romântico, que enfrentou o resgate como um acidente, que pode ser superado com energia e determinaç­ão. Sem estigma. E com resultados excelentes. Mas certo é que, graças à troika, Portugal foi capaz, apenas em três anos, de flexibiliz­ar a sua economia e disciplina­r as suas contas públicas muito mais do que nas três décadas ante- r i ores. Além do mais, neste último ano viu- se livre dos “homens de negro”, a economia recuperou o acesso aos mercados, os cofres públicos voltaram a estar cheios de dinheiro e o país tem umas condições de financiame­nto razoáveis. A economia cresce a um ritmo modesto, pouco mais de metade do espanhol, mas a taxa de desemprego está muito abaixo da do meu país e foi reduzida em três pontos percentuai­s, uma velocidade consideráv­el.

É esta a trajetória que fica em risco se os cidadãos optarem por formações políticas que postulam uma mudança de estratégia. Em Espanha acabámos de ter eleições autárquica­s e autonómica­s. Nelas, os espanhóis decidiram voltar à esquerda. Não importou que a economia esteja a crescer a um ritmo superior a 3% e que se tenham criado mais de meio milhão de postos de t rabalho. Em vez de optarem por um mercado livre e por uma sociedade aberta, os meus compatriot­as elegeram muitos dirigentes que apostam em mais impostos, mais despesa e mais regulação. A consequênc­ia é que teremos uma economia mais intervenci­onada, menos competitiv­a e uns cidadãos mais cativos do Estado. No último número da revista que dirijo temos uma conversa com o presidente do BBVA – o segundo banco do país e um dos mais importante­s do mundo –, e Francisco González é taxativo ao advertir contra os populismos: “Já estão a paralisar os i nvestiment­os em Espanha”, assegura. “A inércia da economia não é tão forte que possa resistir a um cenário político instável.” Que foi o mesmo que sugeriu o Presidente Cavaco Silva. Há muitas razões para os cidadãos tomarem, às vezes, decisões que não parecem racionais. Por exemplo, apesar da alternânci­a no poder da direita e da esquerda, tanto em Espanha como em Portugal o pensamento dominante, que se transmite através do ensino, dos meios de comunicaçã­o, do folclore, da arte, da literatura e, inclusive, da religião assenta sobre duas crenças básicas: a superiorid­ade moral do público sobre o privado e o carácter coletivo da riqueza. Segundo esta tese, o público está, por definição, livre da ação egoísta da ação privada e rodeado sempre de uma aura de bondade moral que oculta o carácter coercivo do Estado. Por outro l ado, o normal não é conceber a prosperida­de como resultado do esforço e do risco individual, mas antes como uma criação da comunidade no seu conjunto, na qual ninguém em particular é o protagonis­ta. O corolário destas i deias é que nenhum i ndivíduo deve ser excluído do desfrute do bem- estar independen­temente da sua contribuiç­ão individual para o fundo da riqueza coletiva. Nestas circunstân­cias, as expectativ­as dos votantes sobre a atuação económica dos seus representa­ntes estão mais influencia­das pela preservaçã­o dos seus direitos do que pelos resultados objetivos da gestão económica dos políticos. E estas ideias, tão profundame­nte erradas como popularmen­te enraizadas, são o aval permanente com que conta a esquerda de cada vez que enfrenta umas eleições gerais. Ou, para o dizer de outra maneira, o handicap da direita ou daqueles que defendem uma maneira l iberal de entender a política e a economia.

Portugal foi capaz de superar a crise em quatro anos, mas está muita coisa em jogo nas próximas eleições l egislativa­s. Em Espanha, onde as eleições se realizarão no final do ano, também. Se a presença de um governo estável, comprometi­do com a correção dos desequilíb­rios e com a aplicação das reformas estruturai­s f oi determinan­te para superar a grande recessão, o acesso ao poder de governos sem maioria suficiente, ou, ainda que disponham dela, relutantes em prosseguir o ajustament­o das contas públicas, ou dispostos a adiar esse objetivo no tempo, ou partidário­s de paralisar ou reverter as reformas introduzid­as até à data geraria incerteza e poria em sério perigo a recuperaçã­o. Tanto Espanha como Portugal – mais ainda tendo em conta o efeito contaminad­or da Grécia – estão ainda muito sensíveis à perda da confiança i nternacion­al. Uma mudança de governo para pior deslocaria os investimen­tos para território­s mais confortáve­is e enfraquece­ria a nossa capacidade de financiame­nto. Pior ainda, deteria o caminho da prosperida­de que tanto esforço custou a alcançar.

Graças à troika, Portugal foi capaz, apenas em três anos, de flexibiliz­ar a sua economia e disciplina­r as suas contas públicas muito mais do que nas três décadas anteriores

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal