O que todos temos em jogo
Portugal terá eleições legislativas a 4 de outubro próximo. Na sua alocução televisiva, Cavaco Silva incitou os portugueses a confirmar um governo com apoio maioritário porque “é esta a situação da maior parte dos países da UE” e porque os benefícios de um executivo estável e duradouro são incontestáveis. Mas a sua posição institucional impediu- o de reivindicar a virtude fundamental de qualquer poder executivo: que tenha a orientação correta. Não é a mesma coisa o poder ser ocupado por um partido ou uma coligação comprometidos com as reformas que tiraram o país da recessão, propiciaram o regresso do crescimento ef i zeram recuar o desemprego ou por outro grupo que o tenha conseguido aproveitando o descontentamento da população com os sacrifícios infligidos, exaltando os seus instintos mais primários e prometendo uma política alternativa que o caso da Grécia demonstrou ser impossível. Em 2014, o PIB da Grécia crescia pela primeira vez desde 2007 impulsionado pelo consumo, pelo investimento privado e pelas exportações. O país tinha superavit primário nas contas públicas. Mas os gregos elegeram o Syriza, que, sete meses depois, voltou a instaurar a recessão na Grécia e a submeteu a condições ainda mais duras por parte dos credores.
Portugal esteve três anos intervencionado pela troika. Estou muito consciente do que i sto significa. A perda de soberania é uma humilhação dolorosa, mas é o que acontece quando o montante das dívidas é insuportável, os prestamistas fecham a torneira do crédito e a alternativa à ocupação é simplesmente o suicídio. Eu penso, não sei se erradamente, que o carácter dos portugueses é mais propenso a contemplar esta legislatura com uma melancolia ou um sentimento de injustiça que está ausente nos irlandeses, um povo mais pragmático, menos romântico, que enfrentou o resgate como um acidente, que pode ser superado com energia e determinação. Sem estigma. E com resultados excelentes. Mas certo é que, graças à troika, Portugal foi capaz, apenas em três anos, de flexibilizar a sua economia e disciplinar as suas contas públicas muito mais do que nas três décadas ante- r i ores. Além do mais, neste último ano viu- se livre dos “homens de negro”, a economia recuperou o acesso aos mercados, os cofres públicos voltaram a estar cheios de dinheiro e o país tem umas condições de financiamento razoáveis. A economia cresce a um ritmo modesto, pouco mais de metade do espanhol, mas a taxa de desemprego está muito abaixo da do meu país e foi reduzida em três pontos percentuais, uma velocidade considerável.
É esta a trajetória que fica em risco se os cidadãos optarem por formações políticas que postulam uma mudança de estratégia. Em Espanha acabámos de ter eleições autárquicas e autonómicas. Nelas, os espanhóis decidiram voltar à esquerda. Não importou que a economia esteja a crescer a um ritmo superior a 3% e que se tenham criado mais de meio milhão de postos de t rabalho. Em vez de optarem por um mercado livre e por uma sociedade aberta, os meus compatriotas elegeram muitos dirigentes que apostam em mais impostos, mais despesa e mais regulação. A consequência é que teremos uma economia mais intervencionada, menos competitiva e uns cidadãos mais cativos do Estado. No último número da revista que dirijo temos uma conversa com o presidente do BBVA – o segundo banco do país e um dos mais importantes do mundo –, e Francisco González é taxativo ao advertir contra os populismos: “Já estão a paralisar os i nvestimentos em Espanha”, assegura. “A inércia da economia não é tão forte que possa resistir a um cenário político instável.” Que foi o mesmo que sugeriu o Presidente Cavaco Silva. Há muitas razões para os cidadãos tomarem, às vezes, decisões que não parecem racionais. Por exemplo, apesar da alternância no poder da direita e da esquerda, tanto em Espanha como em Portugal o pensamento dominante, que se transmite através do ensino, dos meios de comunicação, do folclore, da arte, da literatura e, inclusive, da religião assenta sobre duas crenças básicas: a superioridade moral do público sobre o privado e o carácter coletivo da riqueza. Segundo esta tese, o público está, por definição, livre da ação egoísta da ação privada e rodeado sempre de uma aura de bondade moral que oculta o carácter coercivo do Estado. Por outro l ado, o normal não é conceber a prosperidade como resultado do esforço e do risco individual, mas antes como uma criação da comunidade no seu conjunto, na qual ninguém em particular é o protagonista. O corolário destas i deias é que nenhum i ndivíduo deve ser excluído do desfrute do bem- estar independentemente da sua contribuição individual para o fundo da riqueza coletiva. Nestas circunstâncias, as expectativas dos votantes sobre a atuação económica dos seus representantes estão mais influenciadas pela preservação dos seus direitos do que pelos resultados objetivos da gestão económica dos políticos. E estas ideias, tão profundamente erradas como popularmente enraizadas, são o aval permanente com que conta a esquerda de cada vez que enfrenta umas eleições gerais. Ou, para o dizer de outra maneira, o handicap da direita ou daqueles que defendem uma maneira l iberal de entender a política e a economia.
Portugal foi capaz de superar a crise em quatro anos, mas está muita coisa em jogo nas próximas eleições l egislativas. Em Espanha, onde as eleições se realizarão no final do ano, também. Se a presença de um governo estável, comprometido com a correção dos desequilíbrios e com a aplicação das reformas estruturais f oi determinante para superar a grande recessão, o acesso ao poder de governos sem maioria suficiente, ou, ainda que disponham dela, relutantes em prosseguir o ajustamento das contas públicas, ou dispostos a adiar esse objetivo no tempo, ou partidários de paralisar ou reverter as reformas introduzidas até à data geraria incerteza e poria em sério perigo a recuperação. Tanto Espanha como Portugal – mais ainda tendo em conta o efeito contaminador da Grécia – estão ainda muito sensíveis à perda da confiança i nternacional. Uma mudança de governo para pior deslocaria os investimentos para territórios mais confortáveis e enfraqueceria a nossa capacidade de financiamento. Pior ainda, deteria o caminho da prosperidade que tanto esforço custou a alcançar.
Graças à troika, Portugal foi capaz, apenas em três anos, de flexibilizar a sua economia e disciplinar as suas contas públicas muito mais do que nas três décadas anteriores