Mandamentos
Quanto aos modos de vida, conserva um pé dentro e outro fora. Deixa- te fascinar pelas identidades e as tradições – pelas histórias que contam, pela história de que são mensageiros. Mas não te esqueças de conservar um pé dentro e outro fora. Aprende a ser visitante na tua terra como a fazer- te de casa em terra alheia. Cultiva o choque e o contraste, os cambiantes e as camadas. Mas não abandones o teu lugar – não te deixes puxar para baixo a um ponto que te leve a embrutecer nem suficientemente para cima até teres de representar um papel. Sobretudo isso: enquanto puderes, ignora os arquétipos e aquilo que julgas esperarem de ti. Rejeita as tribos, as unanimidades, as ideias definitivas. E, quando te achares absorto de indignação, procura descer um grau para a perplexidade. A perplexidade é o gesto mais negligenciado deste tempo. Não construas sistemas filosóficos em torno da tua perplexidade. Aprende a surpreender- te. Aprende a amar a perplexidade. E conserva um pé dentro e outro fora – sempre um pé dentro e outro fora. Não procures pertencer ao que não pertences. Não te envergonhes daquilo a que já pertenceste. Arrepende- te e tenta de novo. Soma hipóteses, em vez de as excluir. Deixa- te maravilhar com a simples possibilidade. E – muito importante – proíbe- te de gostar e não gostar. Não elimines porque não gostas nem chames os acrobatas porque gostas. É o grau zero do pensamento, este nosso gostar e não gostar de hoje. Deixa- te comover com aquilo de que não gostas – encantador será poderes começar a gostar disso também. Não sejas cínico: sê múltiplo. Aprende a povoar- te. Evita os absolutos. Ama o que puderes. Faças o que fizeres, e quanto aos modos de vida, conserva um pé dentro e outro fora – e fá- lo tanto se viveres no campo como se viveres na cidade.