Diário de Notícias

AS CRIANÇAS NO CORAÇÃO DE LISBOA

Durante décadas, disse- se que era um bairro deserto, onde só viviam idosos; agora, clama- se que é uma enchente de turistas. De famílias na Baixa da capital portuguesa, e das suas crianças, fala- se muito pouco ou nada – e contudo, ei- las

- FERNANDA CÂNCIO

Laura tem 11 anos e vive na Rua da Prata. Nunca conheceu outra casa: nasceu dois anos depois de a mãe, Ana da Silva, ter comprado o segundo andar de um prédio forrado a azulejos, a dois passos da Praça da Figueira. Cem metros quadrados que em 2001 custaram, com as obras de remodelaçã­o, 115 mil euros. Agora com 46 anos, Ana, professora de línguas e ciências sociais, conheceu o pai de Laura, o artista plástico José Manuel Bastos Soares, que como ela leciona no Instituto Politécnic­o de Santarém ( donde Ana é natural), no mesmo ano em que se mudou para a Baixa; pouco tempo depois, ele foi viver com ela. A chegada de Laura não lhes esmoreceu a paixão pela zona – pelo contrário: “Gosto muito de viver aqui”, diz Ana. “Não queria morar em mais lado nenhum. Quis sempre comprar no centro histórico e ainda por cima esta casa, sendo a melhor que vi, era também a mais barata. Tem todos os meios de transporte ao pé, um parque de estacionam­ento ao lado – embora deixemos o carro na rua, em lugar para residentes –e é uma zona supersegur­a. Desde os 7 que a Laura vai à mercearia e ao pão sozinha, e desde os 10 que vai para a escola – anda desde os 5 anos no Liceu Francês, nas Amoreiras – também sozinha, de autocarro, no 711, que é direto.” José Manuel interrompe: “Alguma vez hoje em dia, na maioria dos sítios, uma criança vai sozinha para a escola aos 10? E temos vida de rua de manhã à noite, e duas esquadras da polícia, uma aqui na rua. Parece- me muito mais seguro do que muitos bairros. Além disso, temos o comércio todo, vários supermerca­dos e abriram padarias e geladarias muito boas ultimament­e. Sem esquecer que é uma zona belíssima, com uma arquitetur­a fantástica.”

Até o que costuma ser uma dor de cabeça para os pais – encontrar um infantário perto de casa – foi relativame­nte simples: “Andou num jardim de infância aqui ao pé, numa transversa­l à Rua da Madalena, a partir dos seis meses, e depois mudámo- la para um público, o Menino de Deus, no Castelo, porque tinha muito mais condições, espaço para brincar, baloiços, etc. Este aqui ao pé não tem nada”, conta a mãe. Provavelme­nte Laura iria de qualquer modo para o Liceu Francês – Ana viveu em França e é fluente na língua – mas as opções escolares na zona eram e continuam exíguas ( ver texto nestas páginas). Já atividades para crianças, menos mal: “Há a Cinemateca Júnior, no Palácio Foz, todos os sábados, com um programa muito giro, e antes havia a piscina do Ateneu, que entretanto fechou – agora ela vai para a piscina dos Anjos. E anda numa escola de música muito boa, privada, aqui perto.”

Defeitos? Também há. Laura atesta: “Quando era pequena não havia muitas crianças aqui e senti muita fal- ta de sítios para brincar. Ia para o Martim Moniz jogar à bola com os meus pais, andar de bicicleta, trotineta... Às vezes na Praça da Figueira também.” O escorrega da Sé Quando não há cão, caça- se com gato. Fazer das praças campos de jogos ( e pistas de skate, como sucede na Praça da Figueira) ou descobrir as virtualida­des insuspeita­s de um monumento nacional. Caso dos três filhos da jornalista e diretora do Público Bárbara Reis, 45 anos, desde 2005 a viver na antiga freguesia da Madalena, nome, et pour cause, da filha do meio ( 10 anos), que tinha meses quando se mudaram. “Na parede da Sé há um reforço inclinado, muito polido. Os meus filhos descobrira­m aquilo e vão lá escorregar. Uma vez vi uma senhora velhota parada a olhar, com um sorriso. Disse que fazia aquilo quando era criança.” O perigo certificad­o da brincadeir­a não esmorece o embevecime­nto. “Os meus filhos têm sorte em crescer no bairro mais bonito de Lisboa. Quando a vemos nos rankings mundiais das cidades mais belas é por causa desta zona. Pelas ruas – ir ao talho é uma experiênci­a bonita, ir à lavandaria, à mercearia, podem- se tornar as coisas simples do dia- a- dia em momentos de grande prazer – e pelas casas, que são magníficas, de espaços abertos, amplos, pés- direitos muito altos. Acredito que viver numa casa bonita potencia a felicidade. E tem- se vida de bairro – tenho amigos novos que têm que ver com morar aqui, fazem- se amizades por gostar de viver aqui – e ao mesmo tempo cosmopolit­a: vai- se ao teatro a pé, à ópera a pé, à FNAC e também ao cinema, e de qualidade, agora que abriu o Ideal, no Calhariz.” Pode- se até ir a pé para o trabalho – caso do marido de Bárbara, o arquiteto Pedro Reis, que tem ateliê no Chiado. E as duas filhas mais velhas, porque os pais fizeram questão de que frequentas­sem “uma escola do bairro”, andaram numa pré- primária IPSS a 200 metros de casa. “A partir de certa altura passaram a ir sozinhas. O Sebastião [ agora com 5 anos] já não andou lá porque a escola estava com muitos problemas e fechou.” Também há uma escola primária na mesma rua, mas, lamenta Bárbara, “não tem pátio. As crianças têm de brincar no corredor. Há essa falha: é preciso investir numa boa escola primária e pré- primária. Porque há imensas pessoas com crianças aqui. Só num raio de cem metros temos dez amigos com filhos destas idades. E os miúdos gostam muito do bairro, que é óptimo para dar os primeiros passos. Se querem comer um gelado, vão os três sozinhos.”

E para brincar? Bárbara suspira. “Há um parquezinh­o infantil em Alfama, a dez minutos a pé. Faz muita falta um nesta zona.” A duas ruas de Bárbara ( na dos Douradores), Miguel Braga, 40 anos, ex- jornalista e dono de uma produtora de vídeo com dois filhos, António e Matias, de 7 e 6, quei-

xa- se do mesmo. “Gosto imenso de sair aqui com as crianças mas um parque não há. Vamos para o jardim da Estrela ou para o Príncipe Real. Mesmo assim, os miúdos adoram: agarram nas trotinetas e vão para o Terreiro do Paço. Mas se quiserem jogar à bola só na escola. E há uma coisa que não percebo: é um sítio muito central e muito plano e não há ciclovia.” Tendo escolhido a Baixa para morar e negando aversão a turistas – “Também me mudei para aqui porque gosto” – Miguel diagnostic­a “uma falta de estratégia em relação a quem vive aqui. Mesmo na perspetiva do turismo, o que torna este sítio mais engraçado é viverem cá pessoas e haver comércio antigo. E há crianças e era importante viverem mais. Quando para aqui vim, há três anos e meio, ouvi dizer que o Tribunal da Boa Hora ia ser uma escola, mas não sei como isso está”. Para já, os miúdos andam na escola de São José, junto ao jardim do Tourel. Não exatamente perto, mas é uma escola pública. E a esperança permanece de que as coisas melhorem: “Criou- se uma imagem errada da Baixa, como sítio onde ninguém vive. Fazem- me comentário­s tipo ‘ Que horror, vives ali? E onde é que pões o carro?’ Por acaso já vivi em sítios muito piores para estacionar, como a Lapa. Claro que é preciso uma pessoa gostar disto. E que não nos tornem a vida mais difícil. Ultimament­e, com os hotéis e as lojas de carros para turistas andam a tirar lugares aos residentes.”

Margarida Amaro, bióloga, 38 anos, três filhos de 7, 6 e 3 anos, habitante da Rua da Madalena, corrobora. “Dizem muito que querem que pessoas vivam aqui mas toda a política é feita em contrário. Todos os dias somos confrontad­os com a ideia de que não somos importante­s: em tudo o que acontece – marchas, Santo António, etc. –, bloqueiam as ruas sem avisar. E já fui a uma sessão da Junta de Santa Maria Maior por causa das crianças. Faz- me muita confusão haver tão poucas árvores. Para irmos a um jardim temos de pegar no carro. A Ribeira das Naus é bonita mas não dá para crianças: tem automóveis e não há sombras.” Vizinha de prédio de Margarida, Inês Horta Pinto, 36 anos, com um bebé de 2 – o Rafael –, lamenta que a recente obra do Largo do Caldas tenha ficado “tão árida”: “Faltam árvores, uns canteiros...” Coimbrã de origem, Inês morava em Alfama até se casar e mudar para a Baixa; Margarida cresceu na zona da Rua Castilho e o marido nas Avenidas Novas, mas depois de viverem no estrangeir­o foi aqui que quiseram comprar casa. “Gosto imenso de viver aqui. Da minha casa – é uma casa grande, com uma vista espetacula­r, gosto imenso das pessoas do meu prédio, da gente dos comércios. E gosto de ver pessoas a passar, da animação. Tem havido uma revitaliza­ção enorme, o que é ótimo. Há 10 ou 15 anos a Baixa metia medo – hoje em dia à uma da manhã ando sozinha, sinto- me segura.” Conclui: “Com paixão todos os inconvenie­ntes esmorecem comparados com as vantagens.”

Inês concorda. “Quando estávamos a ponderar comprar, pedimos a um tio nosso, engenheiro civil, para a ver e ele perguntou: querem mesmo viver aqui? Agora dizem isso mas quando tiverem crianças mudam logo.” Não foi o caso. Mudou- se em agosto de 2013, com um Rafael de 2 meses, e se descobriu a dificuldad­e de pilotar um carrinho de bebé nas ruas de Lisboa, está encantada por poder ir para o trabalho ( no Tribunal Constituci­onal) a pé ou de elétrico, enquanto o marido, que trabalha num banco na Baixa, se põe lá num pulo. Aliás, fazem grande parte das compras a pé. “Uma das coisas boas aqui são as lojas tradiciona­is. Mas de mercearias sinto falta, praticamen­te não há.” Uma das últimas mercearias tradiciona­is da Baixa, a Açoreana, na Rua da Prata, fechou em 2011 porque o edifício foi convertido em hotel. Um sintoma de algo que preocupa as vizinhas: “Quando comprámos, a ideia era que no prédio iam morar famílias, mas agora metade das frações estão votadas ao aluguer de curta duração. Sempre gente diferente a entrar ea sair, não fecham a porta, deixam lixo no chão em vez de no caixote... e começa a haver muito barulho. Está a transforma­r- se um bocado num parque turístico.” Inês, jurista, anda a trabalhar numa argumentaç­ão “para impedir isto em prédios habitados: há lugar para tudo mas tem de haver regras, separação de estados. Esta onda está a levar a uma inversão do repovoamen­to. O preço das casas e até a tipologia estão a sofrer a influência desta bolha. Somos poucos os que aqui vivem, mas estávamos a começar a ser mais. Assim, não sei.”

 ??  ?? Inês Horta Pinto, 36 anos, e Pedro Júdice, 39, mudaram- se para a Baixa em agosto de 2013, quando Rafael tinha 2 meses ( vai fazer 2 anos). Sentem- se repovoador­es e exigem ser tidos em conta nas decisões
Inês Horta Pinto, 36 anos, e Pedro Júdice, 39, mudaram- se para a Baixa em agosto de 2013, quando Rafael tinha 2 meses ( vai fazer 2 anos). Sentem- se repovoador­es e exigem ser tidos em conta nas decisões
 ??  ?? Laura nunca teve outra casa senão o apartament­o da Rua da Prata que a mãe, Ana da Silva, comprou há 13 e onde vive com ela e o pai, José Manuel Bastos Soares. Em baixo, Margarida Amaro com os filhos na casa da Rua da Madalena
Laura nunca teve outra casa senão o apartament­o da Rua da Prata que a mãe, Ana da Silva, comprou há 13 e onde vive com ela e o pai, José Manuel Bastos Soares. Em baixo, Margarida Amaro com os filhos na casa da Rua da Madalena

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