Diário de Notícias

“Há os sabujos, os gajos que se metem nas conversas e se põem em bicos de pés. Há muitos, então no meio artístico, há muita gente mesmo”

- NUNO S A R A I VA

Os calos na ponta dos dedos e a unha do indicador direito cortada no ângulo certo, “se não está com aquele ângulo, a pessoa deixa de pensar na música e começa a pensar como é que há de pôr a mão para aquilo soar melhor”, denunciam a devoção de Mário Pacheco. “Aquilo” é a guitarra portuguesa que, nas mãos do Mário, trina como nas de nenhum outro. É assim desde que Carlos Paredes, mestre dos mestres – “muito melhor do que o Keith Richards, o Eric Clapton ou o Mark Knofler” –, o encantou quando tinha “16 ou 17 anos”. “O meu pai apareceu lá em casa com um disco que era o EP dos Verdes Anos. Foi a primeira coisa que ouvi e era aquilo que eu tocava. É uma sonoridade completame­nte diferente. Depois sai um outro disco com guitarra portuguesa e aí vi que era daquilo que eu gostava e que queria fazer na vida.” Miguel Esteves Cardoso chamou- lhe um dia “o senhor fado” e, de facto, todo ele existe, nada nele é triste, todo ele é fado.

Há vidas que dão filmes. E a de Mário Pacheco dava certamente. Mas também dava um fado ou mais do que um, porque tem uma vida cheia. “Consideran­do sempre que o fado por essência é triste, e eu não sou por essência triste – a vida, às vezes, faz- nos ficar mais pensativos e contemplat­ivos –, por isso seria provavelme­nte um fado contemplat­ivo. Aliás, é o tipo de fados de que eu gosto, descritivo­s. Seria um fado que fiz para a Amália, que não é exatamente aquilo que eu sou, mas é um bocadinho aquilo que eu gostava de ser. É um fado em que a música é minha, a letra obviamente é do meu parceiro Fernando Pessoa, e chama- se Na Ribeira Deste Rio. Por isso é o fado de uma vida. Podia escolher outros também do Fernando Pessoa que o Camané canta e que nos anos em que toquei com ele me prendia sempre àquela letra, à entoação que ele fazia num fado tradiciona­l que é O Fado Meia- Noite. Outro que é também do Fernando Pessoa, que é A Esca- da sem Corrimão, que é uma escada em caracol mas que não tem corrimão. É por aí que eu ando, a olhar com alguma atenção, a contemplar como o Fernando Pessoa escreveu em relação à ribeira: ela passa e eu confio que vai dar certo. Por isso é como aquele chavão, eu sou um otimista preocupado. Sou um otimista e às vezes as preocupaçõ­es não existem porque eu queira, mas é a vida.”

Entre a fatia de queijo da ilha e as azeitonas que servem de entrada, a conversa deriva fatalmente para a política e para os políticos que, não raras vezes, vão ao seu Clube de Fado, inaugurado em 1995. Já voltamos ao fado, até porque Mário Pacheco quer falar de Amália para acabar “com certas mistificaç­ões”. “Há muita coisa na minha vida que tento seguir ou não seguir através das coisas que vejo. E em relação à política vejo tanto descaramen­to, tanto impudor… Já houve alguém que me disse: ‘ Ó Mário, não sejas assim. Tu falas frontalmen­te, isso não pode ser assim.’ Houve aí um artista da praça que me disse: ‘ Ó pá, vais lá a minha casa e eu dou- te numa semana um curso de imposturic­e e deixas de ter problemas!’ Mas eu não gosto disso.” Artesão das notas que compõe, Mário Pacheco não deixa de se espantar com aquilo que lhe entra casa dentro todos os dias pela televisão ou pelos jornais. “Não se aprende nada com os ciclos que são sempre os mesmos e ninguém aprende. Mas o que me surpreende mais é a capacidade de sofrimento da grande maioria. Sou um privilegia­do, sofri à minha maneira as malvadezas deste governo. Malvadezas que, para mim, eram desnecessá­rias. Ou seja, o que é necessário é necessário e não se vai deixar de comer para meter gasolina no automóvel. Mas não concordo com as opções políticas. Admiro, no entanto, a tenacidade, a capacidade de sofrimento. Basta ir um bocadinho ao fundo, falar mesmo com as pessoas, não é a espuma, é ir um bocadinho ao fundo e fica- se impression­ado com a resistênci­a. Isso impression­ou- me durante estes anos. Eu esperava que, eventualme­nte, houvesse convulsões sociais.” Mas não houve porque somos mesmo

um país de brandos costumes. E porque “as pessoas também são esperanços­as. Embora digam que isto nunca vai melhorar, conseguira­m adaptar- se à fome e às carências”. Incomoda- o a falta de sensibilid­ade do que se diz e do que se faz. “Era preciso fazer muita coisa, claro. Mas é a tal história, não se pode matar a galinha que está boa… Isto que dizem agora, ‘ ah, chegámos a um bom objetivo’, é a tal história, mas a estrada está juncada de cadáveres. Chegámos, conseguimo­s chegar, mas então e as pessoas que morreram?”

Além de músico e compositor, Mário Pacheco é empresário. E, por causa da crise e do IVA a 23%, já teve de despedir alguns empregados. “Há três anos e meio que tenho a certeza de que a maioria das pessoas acha que não há problema de o IVA ter passado de 13% para 23%. Dizem- me: ‘ Então senhor Mário, passou de 13 para 23, qual é o problema?’ O problema é que eu de cem mil euros de venda pagava 13 mil euros e agora pago 23 mil. A diferença é só essa.” Uma vez, o ex- ministro da Economia Álvaro Santos Pereira apareceu- lhe em Alfama e Mário Pacheco não resistiu a pedir- lhe contas. “Ele até é uma pessoa simpática e disse- me assim: ‘ Ah, isto é a troika e tal. Mas, senhor Mário, as empresas têm de se adaptar.’ Mas o ministro foi ao Clube de Fado porque alguém lhe disse que aqui era bom, onde é que eu posso adaptar- me mais? Em que é que eu posso ser melhor? O senhor ministro está a dizer- me que eu tenho de despedir pessoal porque tenho aqui 20 pessoas muito bem pagas? Acho que se as pessoas são boas têm de ser pagas. Não é só a palmada nas costas que interessa. Isso é fundamenta­l para uma empresa. Como é que se pode andar satisfeito a ganhar 600 euros por mês? Tenho empregados a ganhar 4000 euros por mês lá na casa. Não posso dizer que agora tem de passar para 2000 e ao outro que ganha 1500 que vai passar para 800. E eu disse exatamente isto ao ministro. ‘ As pessoas têm de se adaptar e tal’, insistia. Está- me a dizer que eu tenho de despedir pessoal? Ele fez aquela cara de quem diz, ‘ o que é você pode fazer mais?’”

Na mesa já estão os pilins, carapaus pequeninos, e o cabrito que regamos com vinho branco, Vinha Grande de 2013. Mário Pacheco, feito entretanto comendador pelo Presidente da República. “Quando me ligaram só perguntei porquê. Nem pensei muito em mim. Pensei que é alguma coisa que fica de mim para os meus filhos e para os meus netos. Está em Diário da República”, diz com sorriso trocista e o orgulho de quem se sente reconhecid­o.

Foi o fado que o fez comendador. “Tive muita sorte, nasci na altura exata para conhecer aqueles de que as pessoas já só têm memória: o Alfredo, a Amália, a Hermínia, o Zel. O fadista, o intérprete, o honesto a cantar. Tenho muitas saudades de ouvir o Carlos Zel, e foi tão mal- amado, não foi reconhecid­o. Mas o Zel punha tudo em cada interpreta­ção.” Já vamos à Amália porque ainda há pontos para pôr nos ii. Mais do que a voz, “que é um dom que é marcante porque é o que as pessoas ouvem”, Mário Pacheco valoriza o que está por trás dela. “Há gente que tem esse dom e o utiliza de uma forma tão deplorável e há gente que não o tem e, no entanto, tem uma alma absolutame­nte extraordin­ária. Eu sei quando as emoções são treinadas, vejo muita gente a iludir. A música tem essa virtude de quase radiografa­r a pessoa. Seja com os compositor­es clássicos seja com os contemporâ­neos, a gente pode ver que em determinad­a altura aquela pessoa está feliz, aquela pessoa estava apaixonada. E isso quando há uma honestidad­e por trás disto tudo, quando as pessoas são naturais.” É por isto que nem tudo foi bom com a consagraçã­o do fado como património da UNESCO. “É como uma moeda, tem dois lados. É agradável, alertou as pessoas para uma música que existe num país pequenino, e as pessoas vêm, ficaram curiosas. Agora, criou uma massificaç­ão que é péssima. Tem gente aí a cantar e a tocar que é horrorosa, mas têm trabalho todos os dias e ganham muito dinheiro.”

Chegamos então ao ponto sério da conversa. Para o Mário é ponto de honra “que fique bem presente e sublinhado e a bold que não fui nem me considero guitarrist­a da Amália”. Mas porquê teimar em desfazer esta ideia feita? Não é modéstia, até porque nos últimos 10 anos de vida de Amália, Mário Pacheco esteve sempre ao lado, mesmo no palco. É gratidão “em troca de tudo o que ela me ensinou só de a ouvir falar. É a tal história das grandes vozes. A Amália tinha uma grande voz, mas por trás dessa voz estava uma inteligênc­ia sublime, uma perspicáci­a enorme, uma sensibilid­ade e um bom gosto sublimes”. É por isso que faz questão de dizer, um por um, que “os últimos guitarrist­as da Amália, de trás para a frente ou de frente para trás, foram o Fontes Rocha – o maior guitarrist­a de fado de todos os tempos –, o Carlos Gonçalves, o Domingos Camarinha, o Jaime Santos, o José Nunes, o Paquito, o Pedro Leal”. Emociona- se ao falar nos dias do Brejão, no Alentejo, e das caminhadas de cinco quilómetro­s que fazia com a “Ana Maria”, a cantadeira de Alfama interpreta­da no cinema por Amália Rodrigues. “Tenho como ponto mais elevado da minha vida o facto de ter estado quase diariament­e com a Amália. Em troca de tudo o que ela me deu, eu só lhe dei uma coisa, esperança, mais nada. E ela deu- me tanto, tanto, tanto.” E que “esperança” foi essa? “Em voltar a cantar, em voltar a gravar. Nos últimos anos estivemos, vá lá, dois meses no Brejão. Gravámos o que seria para um disco e isso foi exatamente antes de ela ir para os Estados Unidos para ser operada. Ela dizia que era um catarro, mas era um cancro. Tenho algumas cassetes dessas gravações que seria maravilhos­o se fossem editadas agora, onde a genuinidad­e é tanta, tanta. Foi a sorte da minha vida.”

Mário não hesita em dizer que Amália é única. Mas fala com orgulho dos seus “filhos” do fado. Da Carminho e do Camané “porque têm a entrega, a genuinidad­e, a alma do fado” que o emocionam sempre que cantam. “Estou a falar nestes dois, mas há mais gente. Tenho um relacionam­ento, uma amizade e um carinho muito grande pela Marisa. Mas a Marisa já passou isto tudo. A Marisa passou para outra galáxia”. E depois há a Cuca Roseta e o Rodrigo Costa Félix e tantos outros para quem compôs e a quem deu a mão. Há a Marta Pereira da Costa, guitarrist­a e “a minha melhor aluna”. E há a Mísia, “uma personagem extraordin­ária”, pouco reconhecid­a cá na terra. “É Portugal. Esse é o Portugal da mediocrida­de, do faz- de- conta, do sabujismo. Houve certos bons princípios que herdei. Não herdei dinheiro nenhum, tive sempre uma vida aconchegad­a, mas é também o que vou deixar aos meus filhos: o exemplo de trabalho e de não malandrage­m e de não sabujismo, que é uma coisa que me incomoda muito, os sabujos, os indivíduos que andam à procura de qualquer coisa que possam ganhar. É essa a nossa sociedade, pelo menos aquela que conheço em Lisboa. Há os sabujos, os gajos que se metem nas conversas e se põem em bicos de pés. Há muitos, então no meio artístico, há muita gente mesmo.”

Vamos embora, que se faz tarde. Podia dizer- lhe “anda Pacheco!” como a Hermínia fazia com o pai do Mário antes de arrancar um fado. Mário, o artesão das notas a quem a prestigiad­a Songlines do Reino Unido colocou no “topo do mundo”, é mesmo o “senhor fado”. Porque como escreveu há não muito tempo o meu amigo Pedro Marques Lopes, “foi Deus a dar- lhe a honra e a cruz de dever ser assim chamado”.

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