Diário de Notícias

Liberdade e dignidade

- ANSELMO BORGES Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Apesar de todos os debates à volta de se saber se somos livres ou não, vivemos na convicção de que o somos, o mesmo acontecend­o com as sociedades. Caso contrário, como se explicaria­m as leis, as normas, os louvores, os julgamento­s, as penas, as prisões?

Há uma experiênci­a de fundo: o ser humano não é objecto, coisa. Olhamos para as coisas como um “i sso”, mas olhamos para os seres humanos como um “alguém”. Alguém que é um “tu” como “eu” e, ao mesmo tempo, um tu que não sou eu: outro eu e um eu outro, formando um “nós”. O outro, no seu rosto e olhar, impõe- se- me como um “alguém corporal”, a visibilida­de de uma interiorid­ade inacessíve­l que se mostra, afirma e impõe.

A experiênci­a radical de não se ser coisa dá- se na consciênci­a da liberdade. Cada um, cada uma, faz a experiênci­a originária de ser dado, dada, a si mesmo, a si mesma, experiênci­a que se explicita na consciênci­a da autoposse. Somos senhores e donos de nós mesmos. Muito cedo, a criança é capaz de dizer ao pai ou à mãe: não és minha dona, meu dono. Pertenço, antes de mais, a mim próprio. Os pais também fazem a experiênci­a de que os fil hos não são pertença sua, pois pertencem a eles mesmos.

Claro que a liberdade não é demonstráv­el. Aliás, se o fosse, não seria liberdade, mas coisa. A liberdade apresenta- se nesta experiênci­a de autoposse e, consequent­emente, na experiênci­a de responsabi­lidade: respondo por mim e pelo que faço. Dada a neotenia – vimos ao mundo por fazer –, temos pela frente a tarefa essencial, constituti­va: fazermo- nos a nós mesmos, uns com os outros, no mundo. Poder- se- ia acrescenta­r que a experiênci­a da l i berdade é uma experiênci­a transcende­ntal: a liberdade afirma- se, mesmo na sua negação. De facto, se tudo estivesse sob o determinis­mo, não seria possível pôr a questão da liberdade e do determinis­mo enquanto tal.

Al i berdade éo f undamento da dignidade humana. Perante alguém livre, impõe- se o respeito ( de respicere: ver e ser visto no mútuo reconhecim­ento). Cá está: o ser humano não é coisa, não é meio; por isso, não tem preço. Embora a liberdade humana seja finita e sempre em situação, a pessoa pertence ao reino dos fins. Immanuel Kant viu isso bem: as coisas têm um preço, porque são meios; o homem não é meio, mas fim e, por isso, tem dignidade. A digni- dade co- implica direitos fundamenta­is, que se impõe reconhecer. As constituiç­ões democrátic­as reconhecem direitos fundamenta­is, inalienáve­is, não os concedem.

Uma vez que o ser humano se tem de fazer a si mesmo – fazendo tudo o que f az, está a f azer- se a si próprio, de tal modo que o resultado pode ser uma obra de arte ou uma vergonha –, está sempre sob a sua responsabi­lidade última. Daqui deriva a angústia que sempre nos acompanha. De tal modo que, como bem viu Dostoievsk­i, na lenda de O Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazov, há uma dialéctica fundamenta­l entre a liberdade e a segurança, estando muitos – a maior parte? – na disposição de entregar o fardo da liberdade a quem queira ficar com ele, aproveitan­do- se disso. Entre a liberdade e a segurança, prefere- se a segurança da norma, do não risco, do não ousar.

A liberdade significa, pois, autoposse, de tal modo que cada um, cada uma, pode e tem de tomar decisões no quadro da realização- de- si- no- mundo- com- os- outros. A liberdade, mesmo se condiciona­da e em situação, implica, portanto, não sujeição total aos determinis­mos físicos, genéticos, psicológic­os ou sociocultu­rais. De facto, depois de todos os condiciona­mentos físicos, genéticos, culturais, ainda podemos perguntar: o que vou eu fazer de mim com tudo isso? Também não é liberdade a pura espontanei­dade ou arbitrarie­dade – não é liberdade, por exemplo, fazer pura e simplesmen­te o que apetece: paradoxalm­ente, isso é necessidad­e –, pois o que a “define” é a autodeterm­inação segundo boas razões, a tomada de decisões racionais, tendo por critério último a plena realização humana de todos os seres humanos. Assim, a liberdade é ao mesmo tempo liberdade de: determinis­mos e constrangi­mentos que impedem a sua realização, e liberdade para: a realização de valores nos vários níveis, a começar pelo reconhecim­ento da liberdade dos outros, pois a liberdade verdadeira quer liberdades. A liberdade não se limita à experiênci­a da sua realidade transcende­ntal e interior, pois exige condições de possibilid­ade da sua realização concreta nos diferentes domínios: condições económicas, culturais, políticas...

Só neste enquadrame­nto se entende o amor autêntico e verdadeiro. Porque sou dono de mim, me possuo, posso dar- me a mim mesmo a alguém, entregar- me, querer viver sendo de alguém a quem me dou.

Mas quantos são verdadeira­mente donos, senhores, de si e não escravos das paixões e das coisas, sobretudo do dinheiro e da opinião pública e do politicame­nte correcto? Por isso é que, num país em crise, quando se pergunta se alguém é responsáve­l, não comparece ninguém.

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